Pesquisas exploram o potencial terapêutico do veneno de serpentes

Júlia Rodrigues - 22-02-2024
1977

Pesquisas desenvolvidas por pesquisadores da Fundação Ezequiel Dias (Funed), com apoio da FAPEMIG, avançam na investigação dos efeitos das proteínas/toxinas de venenos de serpentes no tratamento de tromboses, hipertensão e metástase do câncer 

O Acidente ofídico ou ofidismo é o quadro clínico decorrente da mordedura de serpentes. Só em Minas Gerais, foram contabilizados 2.880 casos em 2022, de acordo com os dados mais recentes da série histórica, registrados pelo Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Segundo o pesquisador da Fundação Ezequiel Dias (Funed), Eladio F. Sanchez, o acidente ofídico representa um sério problema de saúde pública e afeta particularmente as populações de áreas rurais dos países tropicais e subtropicais, sendo considerado como doença negligenciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).  

Sanchez conta que, clinicamente, os acidentes causados por serpentes peçonhentas, tais como espécies dos gêneros Bothrops e Lachesis provocam, entre outros quadros patológicos, severa lesão tecidual no local de injeção do veneno como: dor, inflamação, edema, hemorragia e necrose. Além disso, provocam complexos efeitos sistêmicos no mecanismo hemostático, incluindo hemorragia e coagulopatia, alterações cardiovasculares e respiratórias que podem levar à morte dos acidentados 

O pesquisador coordena o projeto de pesquisa nomeado Toxinologia de Venenos Animais. III. Estudos de desintegrinas e proteínas similares a lectinas tipo C de venenos de serpentes e seu potencial antitrombótico e antimetastático, que explora as potencialidades de proteínas ativas dos venenos como modelos para esclarecer mecanismos fisiológicos e desenvolvimento de novas drogas terapêuticas. O projeto se desenvolve no âmbito do Serviço de Bioquímica de Proteínas de Venenos de Animais (SBVA), da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento da Funed, que mais de 20 anos promove pesquisas com base na evolução das toxinas, observando a sua interação com alvos biológicos. 


Equipe do Serviço de Bioquímica de Proteínas de Venenos Animais" (SBVA) coordenador por Eladio F. Sanchez (o primeiro a direita) Créditos: Ana Luiza Adolfo/Funed

O desenvolvimento do projeto contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Deustfsche Forschungsgemeinschaft (DFG - Alemanha), em parceria com a Münster University (Alemanha). Sanchez explica que o estudo de veneno de serpentes é multidisciplinar e envolve diversas áreas do conhecimento vinculadas ao potencial terapêutico, diagnóstico, perspectivas na descoberta de novas drogas e produção de soros antiofídicos. “Muitas proteínas de venenos têm sido exploradas como modelos no desenvolvimento de fármacos para o tratamento de doenças como tromboses, hipertensão e metástase do câncer. Além disso, numerosos derivados terapêuticos estão constantemente aparecendo”, conta. As proteínas que protagonizam esses estudos são chamadas de metaproteases (SVMPs). As moléculas ganham esse nome por causa da presença do metal zinco na sua estrutura e são especialmente dominantes no veneno das serpentes pertencentes à família Viperidae. “São enzimas multifuncionais e podem atuar como agonistas ou antagonistas sobre vários alvos moleculares dos sistemas fisiológicos”, explica. O pesquisador exemplifica que as SVMPs são responsáveis por provocar hemorragias nas vítimas de acidentes ofídicos ao interferir no processo de coagulação. “Elas atuam na degradação de proteínas da membrana extracelular dos capilares, plasma e na função das plaquetas, células do nosso corpo que tem participação vital na coagulação do sangue. De acordo com a literatura atualizada, as plaquetas, que são componentes anucleados do sangue, têm papel crucial na patologia de doenças cardiovasculares, assim como em casos associados com vários tipos de câncer”, descreve o Sanchez. Contudo, as propriedades farmacológicas das SVMPs são ainda pouco estudadas. Resultados recentes Segundo Sanchez, os estudos desenvolvidos demonstraram o envolvimento das plaquetas na patologia dos problemas cardiovasculares e inflamatórios, assim como com o desenvolvimento de vários tipos de tumores malignos, mais notável no pulmão.

No artigo A fibrinolytic snake venom metalloproteinase, mutalysin-II, with antiplatelet activity and targeting capability toward glycoprotein GPIba and glycoprotein GPVI, publicado em maio de 2021 na Biochimie, Revista Internacional de Bioquímica e Biologia Molecular, os pesquisadores concentraram estudos sobre a atuação da metaprotease denominada Mutalysin-II (mut-II) com propriedades moleculares, biológicas e mecanismo de ação já bem esclarecidas.

Segundo Sanchez, a molécula dissolve, eficientemente, coágulos de fibrina/trombos oclusivos sem efeitos colaterais, inibe a agregação das plaquetas diminuindo assim os riscos de re-trombose. “Esse último é o efeito colateral mais comum dos atuais agentes anti-trombóticos utilizados na clínica médica”, explica.  

Outro estudo desenvolvido pelos pesquisadores investigou as principais propriedades moleculares, função biológica e efeitos em células de câncer da pictolysin-III (Pic-III), metaprotease encontrada no veneno da Bothrops pictus, serpente endêmica da costa central árida do Peru. “Em células de câncer, a toxina provoca alterações morfológicas, comprometendo suas funções básicas”, explica Sanchez.  

“Esses estudos sugerem que a Pic-III pode ser um modelo interessante na busca de agentes alternativos dirigidos a bloquear/inibir agregação plaquetária e da interação de componentes da MEC-células de câncer”, conta. Os resultados foram publicados em maio do ano passado, no artigo Pictolysin-III, a Hemorrhagic Type-III Metalloproteinase Isolated from Bothrops pictus (Serpentes: Viperidae) Venom, Reduces Mitochondrial Respiration and Induces Cytokine Secretion in Epithelial and Stromal Cell Lines, na Pharmaceutics, um periódico internacional sobre ciência e tecnologia farmacêutica e biofarmacêutica. “Os resultados obtidos até o presente momento foram muito satisfatórios, não apenas pela implementação de novos modelos experimentais, mas, fundamentalmente, pelas perspectivas futuras de pesquisa em redes sobre temas de interesse comum na toxinologia de venenos animais e pelo fortalecimento de estudos em colaboração com grupos nacionais e do exterior”, comemora Sanchez. Histórico e parcerias internacionais As pesquisas com veneno de serpentes remontam ao surgimento do centro de pesquisa, hoje, Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento da Funed, durante os anos 1980, a partir da iniciativa do professor Carlos Ribeiro Diniz, com o objetivo desenvolver conhecimentos e qualificar recursos humanos, tendo como base o estudo de venenos animais, como serpentes, aranhas, escorpiões e abelhas. “Esse período coincidiu com a crise na produção de soro antiofídico no Brasil, e os institutos responsáveis pela produção, incluindo a Funed e o Butantan, convocados pelo Ministério da Saúde, assumiram o compromisso de produzi-lo", conta Sanchez. O pesquisador relembra que, sob a coordenação do prof. Diniz, obtiveram recursos por meio do primeiro edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT)para financiar pesquisas sobre venenos, tópico de sua preferência. Como bolsista do Programa Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)/UNESCO (1980-1982) no curso de Pós-graduação em Bioquímica e Imunologia da UFMG, o pesquisador Diniz deu início aos estudos do veneno de Lachesis muta (surucucu, bushmaster), direcionado a identificar e caracterizar os fatores responsáveis pela hemorragia observada nas vítimas do envenenamento. “Preocupados com o risco de extinção, em particular da subespécie L. m. rhombeata da Mata Atlântica, devido ao desmatamento da floresta primária, o veneno da surucucu foi o tema central de estudo”, conta Sanchez. Ele relembra que, em parceria com o prof. David R.G. D. Theakston, da Escola de Medicina Tropical de Liverpool e da Organização Mundial da Saúde (OMS), foram implementados, na Funed, métodos para caracterizar venenos e anti-venenos de serpentes de acordo com as normas da Organização Mundial da Saúde. Como resultado, a Funed foi reconhecida como Centro de Referência junto a outros 12 laboratórios credenciados na OMS (1987). Trocas e parcerias importantes com o serpentário Núcleo Serra Grande (Itacaré, Bahia), a University of Southern California (EUA), Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Perú), University of Münster (Alemanha), Univ. de Duhram (Inglaterra) e Univesidad de Chile marcam o trabalho da linha de pesquisa que integra, desde 2018, a Network for Snake Venom Research and Drug Discovery, rede de pesquisa internacional. “A nosso modo de ver, com a participação de outras instituições nacionais e do exterior, os resultados obtidos são muito satisfatórios e podem ser avaliados na produção científica-tecnológica, assim como na formação de recursos humanos qualificados nos diversos níveis”.