Projeto de pesquisa desenvolve a educação midiática em toda a rede de apoio de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social
“Se nós, adultos, somos afetados pelo excesso de midiatização e o forte apelo para o consumo, imagine crianças que vivem em contextos de muitas vulnerabilidades?”. Esse questionamento feito por Rennan Mafra, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Viçosa (UFV), o impulsionou a se juntar com Rita Cesarino, diretora da Fundação Menino Jesus, para colaborarem em uma iniciativa que gerasse educação midiática a esse público e a toda a comunidade envolta.
Assim nasceu a Rede Miau – Mídias, Infâncias, Adolescências e Universidades, coordenada por Mafra e apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Na última semana, o projeto integrou as atrações da 2ª Semana Brasileira de Educação Midiática, evento realizado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. A existência desse evento evidencia uma preocupação nacional que vem sendo trabalhada pela rede: 92% da população com idade entre 9 e 17 é usuária de internet, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, de 2022.
Para além do evento realizado pelo Governo Federal, existe a Estratégia Brasileira de Educação Midiática, um documento que reúne um conjunto de iniciativas desenvolvidas para a promoção da educação para as mídias da população brasileira. Essa temática ainda foi sugerida como plano de aula na Base Nacional Comum Curricular. A Rede Miau, neste contexto, aproxima crianças, adolescentes, familiares, professores e órgãos públicos a uma análise crítica sobre o conteúdo consumido na internet.
“Eles são expostos a realidades muito diferentes que têm um apelo muito forte para o consumo. Imagina só uma criança que fica acessando as redes sociais desde cedo, tem muito estímulo para consumo, mas uma realidade extremamente vulnerável?”, relata Rennan Mafra. Esse tema foi explorado por Cesarino em sua dissertação de mestrado, que teve coorientação de Mafra. O trabalho “Representações de crianças e adolescentes participantes de um projeto social sobre consumo” abordou a percepção das crianças frente aos estímulos constantes para o consumo. Além disso, abriu as portas para a parceria com a Fundação Menino Jesus, organização sediada em Ponte Nova, município da Zona da Mata mineira, no projeto Rede Miau.
A Rede de apoio
As rodas de conversa acontecem tanto com os alunos, quanto com os familiares. Créditos: Acervo Rede Miau
A Rede Miau foi pensada para expandir as fronteiras da UFV para a região. “Eu, como pesquisador da diferença e de organizações, vi no edital da FAPEMIG uma oportunidade de desenvolver um projeto com a Rita e a Fundação Menino Jesus sobre o tema no qual já tínhamos desenvolvido uma pesquisa e chegado a uma conclusão importante: a alta exposição dessas crianças e adolescentes aos meios de comunicação. Então, pensamos um projeto que pudesse desenvolver e trabalhar competências midiáticas”, conta Rennan Mafra.
Entretanto, à medida que trabalhava no desenvolvimento deste projeto, o pesquisador percebeu que, para realizar uma educação midiática de forma efetiva, ele precisaria envolver outros atores que cuidam dessas crianças e adolescentes. A partir disso, notou que, para além da exposição às redes sociais, esse público também era afetado pela digitalização do serviço público.
“Será que o Conselho Tutelar, por exemplo, já parou para pensar o quanto essas crianças estão expostas à midiatização intensificada? Será que a Secretaria de Saúde, no momento de criar uma política pública para atender essas famílias, já pensou se elas sabem acessar a internet? Será que o Juizado Especial, a Defensoria Pública, que tem informatizado todos os seus serviços, não está produzindo mais uma exclusão para um público que já não tem acesso?”, questiona.
O projeto da Rede Miau criou uma rede de escuta local para entender o trabalho dos serviços públicos e mapear as dores daquela comunidade. Essa teia envolvia não apenas as pessoas afetadas, mas uma equipe que hoje conta com 15 estudantes e oito professores dos cursos de Enfermagem e Comunicação Social da UFV e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), de Psicologia e Direito do Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa), e de Processos Gerenciais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG).
“Se as crianças vêm de contextos vulneráveis, elas podem estar expostas a situações de crimes e, em algum momento, isso pode surgir nos relatos. Nós, então, precisávamos de pessoas especializadas para entender quais caminhos poderíamos seguir”. A estruturação desse grupo foi essencial para a consolidação e o início dos trabalhos da Rede Miau dentro da Fundação Menino Jesus.
Como explica Rita Cesarino, a Fundação não possui psicólogos ou enfermeiros em tempo integral e, nesse ponto, a Rede Miau fez diferença. “Consequentemente, isso tem feito muita diferença também no município [...] e nos direcionamentos passados às famílias para trabalharem com as crianças”, diz.
Neste contexto, a Rede Miau propõe aos órgãos públicos ações que levem ao diagnóstico do quanto efetivo estão sendo os trabalhos realizados de forma digital com esse público e, em paralelo, realizará oficinas sobre as mídias digitais com os alunos para o lançamento de um portal no futuro. “No Portal da Rede Miau, eles vão produzir vídeos, matérias, irão trabalhar com assessoria de imprensa. Vamos compartilhar com eles esses ensinamentos para que eles possam fazer e divulgar esse conteúdo”, completa Rennan Mafra.
Impacto positivo
A criação da Rede Miau gerou grande impacto às crianças e adolescentes da Fundação Menino Jesus. De acordo com a diretora, Rita Cesarino, o projeto abriu um leque de oportunidades para as crianças que vão além da educação midiática. O início das ações na Fundação se baseou em conversas com os assistidos, os familiares e os professores para conhecer e entender as principais limitações.
Os espaços da antiga fazenda onde está localizada a Fundação Menino Jesus foram ressignificados com oficinas ofertadas pela instituição e pela Rede Miau. Créditos: Acervo Rede Miau
As rodas de conversa permitiram aos estudantes serem ouvidos e receberem uma atenção diferenciada. “Eu gostei muito das rodas de conversa porque elas nos ensinaram a diferenciar o que é certo e o que é errado”, conta Gabriel Santana, de 12 anos, aluno da instituição.
Cesarino completa: “A Rede Miau nos possibilita conversar de fato com eles abertamente. Às vezes, nós, professores, não conseguimos conversar com tanta tranquilidade com os alunos sobre as suas necessidades. A Rede Miau amplia essa possibilidade de forma que eles podem se sentar hoje com qualquer pessoa e dizer o que eles realmente pensam”. Ela também ressalta o objetivo da Fundação junto à Rede Miau: ampliar essa abertura para que os estudantes ampliem seus horizontes da fala e possam ocupar lugares que são deles por direito.
Visibilidade social
A diretora explica que alguns dos estudantes possuem dificuldades de aprendizagem, mas que a oferta de oficinas variadas, que vão desde esportes, como futebol, a aulas de música, possibilita que eles façam a diferença dentro de suas casas. “Acreditamos que a dificuldade de aprendizagem escolar não pode tirar o sonho dessas crianças. Por exemplo, o Victor Hugo, uma das crianças que estuda aqui hoje, é um dos melhores jogadores de futebol da sua idade. Esse ano, ele foi para a Granja Comary [centro de treinamento da Seleção Brasileira de Futebol], ele está crescendo e fazendo a diferença tanto aqui na Fundação, quanto no bairro e dentro da família dele”, destaca Cesarino.
A questão de visibilidade e direitos fundamentais também é muito trabalhada pela Fundação Menino Jesus e ampliada pela Rede Miau. A instituição é localizada em uma antiga fazenda escravista em um bairro distante por 3 quilômetros do centro de Ponte Nova, na Zona da Mata Mineira. Rita Cesarino comenta que esta localização em certos momentos dificulta a visibilidade da Fundação que hoje ressignifica todos os espaços que antes eram usados como ambientes de tortura.
Atendendo cerca de 90 alunos, hoje o local que antes era uma senzala se tornou uma sala para praticarem lutas e danças, o tronco onde os escravos eram torturados se tornou um local em que as crianças contam as boas notícias, entre outras práticas que incentivam aqueles alunos a serem livres em suas escolhas. “O local que estamos não dá acesso a lugar nenhum. A gente está no fundo de um cemitério, no fundo de um campo de aviação, e se ninguém quiser nos enxergar, ninguém enxerga. Mas a Rede Miau nos enxergou e dá visibilidade ao nosso trabalho”, destaca a diretora.
“A Fundação, apesar de estar em uma região afastada da cidade, atende além da comunidade mais próxima, mas outras crianças de outras comunidades que vêm de contextos muito diferentes. São famílias multiconfiguradas, com pessoas envolvidas em crimes, em situações de moradias provisórias ou em situação de risco, por exemplo”, conta Rennan Mafra. As crianças, além da exposição social à falta de direitos básicos, ainda sofrem com a exposição aos meios de comunicação e a partir dessa percepção, o pesquisador mobilizou e estruturou a rede que hoje conta com a colaboração multidisciplinar de alunos e professores de quatro universidades.