Deborah Malta: Jornada e percepções

Júlia Rodrigues - 19-01-2024
1222

Conheça mais sobre a pesquisadora mineira mais bem colocada, em escala nacional, na segunda edição do ranking das Melhores Mulheres Cientistas do Mundo, em 2023 

A escolha pela carreira científica é especialmente desafiadora para as mulheres. Preconceitos, estereótipos de gênero e a falta de apoio ainda minam a continuidade e, consequentemente, o sucesso de carreiras promissoras pelo mundo. Segundo o Instituto de Estatística da UNESCO, em pesquisa realizada em 107 países, entre 2015 e 2018, as mulheres representaram 33,3% das pessoas que trabalham com pesquisa científica no mundo. São, ainda, menos creditadas nos artigos dos trabalhos que estão envolvidas do que seus colegas homens, como foi apontado na pesquisa, publicada na Revista Nature em 2022.

Contra a corrente, uma pesquisadora mineira se destacou pela sua contribuição e relevância em ranking publicado pelo portal de pesquisa Reseach.com no final do ano passado. Na segunda edição do Ranking de Melhores Mulheres Cientistas do Mundo em 2023,  que dá reconhecimento e visibilidade a pesquisadoras das mais diversas áreas da ciência, a pesquisadora e professora na Escola de Enfermagem da UFMG, Deborah Carvalho Malta, alcançou a mais alta colocação em escala nacional, somando mais de 770 publicações e 97 mil citações.

Segundo o cofundador e cientista-chefe de dados da plataforma, Imed Bouchrika, o objetivo do ranking é inspirar pesquisadoras, mulheres envolvidas na carreira acadêmica e tomadores de decisão globais, apresentando mulheres bem-sucedidas na comunidade científica. A iniciativa pretende "facilitar a oferta de maiores oportunidades, maior visibilidade e perspectivas equitativas para as mulheres em todos os campos da ciência", destacou, no seu artigo publicado na plataforma.

Para Deborah Malta, “a produção científica só tem sentido se for para contribuir para melhorar o mundo, produzir inclusão social e maior qualidade de vida”. A especialista na área de saúde coletiva, atua principalmente em epidemiologia, vigilância de doenças crônicas não transmissíveis, vigilância de acidentes e violências, promoção da saúde, avaliação de serviços e saúde suplementar.


Com apoio da FAPEMIG a pesquisadora coordenou a pesquisa Tendência da mortalidade por causas evitáveis pelo Sistema Único de Saúde na Região Sudeste do Brasil (2000-2013). O estudo permitiu conhecer a tendência da mortalidade na região Sudeste e suas unidades federativas e apontar quais as áreas prioritárias de intervenção e os pontos que demandavam investimentos.

Primeiro, gostaria que a senhora falasse um pouco sobre o seu trabalho de pesquisa. Como foi o despertar do interesse por temas ligados à vigilância em saúde e saúde pública?  

DM - Comecei com interesse pela pesquisa já na residência médica. Fiz duas residências: Pediatria e depois, Medicina Preventiva e Social. Nesta última, ao estudar Epidemiologia, já iniciei a coleta de dados da minha primeira pesquisa, avaliação do estado nutricional das crianças em escolas da periferia de Belo Horizonte e o desempenho escolar das mesmas. Estes dados foram posteriormente analisados quando entrei na primeira turma do mestrado Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG, resultando no meu primeiro artigo. Esta opção pela saúde pública foi se consolidando ao longo da minha carreira e em especial quando fui trabalhar no Ministério da Saúde, na secretaria de Vigilância em Saúde, quando tive oportunidade de coordenar grandes inquéritos e pesquisas nacionais.  

Além de pesquisadora, a senhora atuou em órgãos públicos municipais. Em sua opinião, como a ciência pode contribuir para a formulação de políticas que atendam a demandas da sociedade?  

DM - Iniciei minha vida profissional na prefeitura Municipal de Belo Horizonte como Pediatra na Saúde escolar. Posteriormente fui trabalhar como sanitarista no Distrito Sanitário Leste em BH, e coordenei o primeiro diagnóstico de saúde da Regional Leste, que apoiou o plano Regional. Depois fui trabalhar no Vale do Aço, e fui secretária de Saúde de Timóteo. Foi um tempo de grande aprendizado, implantando novas formas de gestão e de processos de trabalho. No retorno a Belo Horizonte, implantamos o projeto Vida, na gestão do Prefeito Patrus Ananias, que visava a redução da mortalidade infantil no município. Usamos o instrumental da epidemiologia para identificar as áreas de vulnerabilidade, identificando riscos `a saúde, e discutindo com profissionais de saúde como efetuar mudanças no processo de trabalho em saúde, visando o acolhimento, a humanização e identificação de usuários prioritários. Ou seja, utilizamos as informações em saúde e o instrumental da vigilância epidemiológica para priorização de risco, e orientar as decisões dos profissionais e gestores locais para melhorar a gestão local. O projeto foi muto bem-sucedido e tivemos êxitos na redução da mortalidade infantil no município, mesmo em áreas de risco. Ou seja, utilizamos evidências para a tomada de decisão. 


Como foi sua atuação no Ministério da Saúde? 

DM - Em 2001 Prestei concurso público na UFMG e fui aprovada como docente no Departamento materno infantil de Saúde Pública na Escola de Enfermagem. Em 2004 fui convidada para trabalhar no Ministério da Saúde (MS) na área de Vigilância em Saúde. 

Trabalhei 12 anos no MS como coordenadora Geral e diretora de Vigilância de Doença e Agravos não Transmissíveis e promoção da saúde. Tive oportunidade de coordenar grandes Inquéritos Nacionais como: a pesquisa Nacional de Saúde do Escolar nas edições de 2009, 2012 e 2015, em parceria com IBGE, analisando a saúde dos adolescentes brasileiros e contribuindo para a criação de políticas públicas de saúde e educação. Em 2013 coordenei pelo MS, em parceria com IBGE, a Pesquisa Nacional de Saúde, contendo importantes informações sobre a saúde da população adulta brasileira, quanto às doenças crônicas, acidentes e violências, saúde do idoso, saúde da mulher, saúde da criança, saúde bucal, determinantes e condicionantes à saúde, além dos componentes de antropométricos e exames laboratoriais. A PNS apoia a gestão, além de ser uma fonte inesgotável de análises para pesquisadores em todos os campos da saúde pública. Coordenei ainda o VIGITEL, entre 2006 e 2015, a vigilância de fatores de riscos para doenças crônicas por inquérito telefônico. Foram 10 edições da pesquisa, com informações fundamentais sobre o consumo de tabaco, álcool, alimentação, atividade física, obesidade, dentre outros. Apoiando a gestão, políticas de promoção a saúde e fonte de inúmeras pesquisas e artigos. 

Também no Ministério da Saúde trabalhei na organização dos sistemas de informação em saúde: SIM (Sistema de Informação de Mortalidade) e SINASC (Sistema de Informação Nascidos Vivos). Em 2011 implantamos a notificação de violências domésticas ao SINAN (Sistema Nacional de agravos de notificação), foi um importante marco para conhecermos melhor os casos de violência doméstica no país. Tenho orgulho de ter coordenado esta implantação. 

Além disto, foram inúmeras parcerias com instituições acadêmicas nacionais, internacionais, parcerias com a Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), e OMS – organização Mundial de Saúde, para utilização destes dados e inquéritos para apoiar políticas de proteção social, melhorias do desempenho do SUS, Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde: Global Burden of Diseases, sempre visando a utilização destes dados para apoiar políticas de proteção social, melhorias do desempenho do Sistemas de Saúde.

Acho que foi importante contribuir no aprimoramento da vigilância em saúde, das evidências e sempre busquei incluir temas que abordassem os determinantes sociais e desigualdades em saúde, com um olhar atento para as diferenças segundo gênero, raça/cor, espaço, renda e escolaridade. Assim, estas informações puderam apoiar políticas públicas para inclusão social, a redução das vulnerabilidades e das iniquidades. Priorizar temas ainda pouco estudados como as violências domésticas, apoiar na implantação do Plano de Enfrentamento das doenças crônicas, visando reduzir o consumo do tabaco, apoiando a edição de medidas como ambientes livres do tabaco, proibição da comercialização do cigarro eletrônico, apoiar a edição da Lei Seca, do Academia da saúde, dos acordos para redução de sal nos alimentos, dentre outras. 

Sabemos da importância de estimular a participação científica desde os primeiros anos da escolarização. Que mudanças você considera que ainda são necessárias para atrair mais meninas para a ciência? 

DM- É fundamental a melhoria da educação e do ensino básico para atrair crianças e jovens para ciência. Melhorar o desempenho do ensino básico, boa formação, valorização e remuneração dos professores é essencial para estimular o interesse pela leitura, pela investigação e a ciência. Escolas públicas que estimulem a criatividade, o acesso à cultura, `a inclusão social são fundamentais para despertar o interesse pela ciência. Temos imensas desigualdades no país e o caminho da transformação passa pelo investimento na educação e nas políticas de proteção social.

As políticas de cotas raciais e socioeconômicas são importantes programas para reduzir este fosso de desigualdade. A UFMG tem importantes programas de apoio estudantil, visando apoiar e reter os estudantes na Universidade. Destaco a importância de ampliar as bolsas de iniciação científica, em especial para as alunas cotistas. Este é um importante estímulo para a formação de futuras pesquisadoras, apoiando-as na ruptura de ciclos de pobreza e de violência doméstica. Nossas pesquisas apontam que 20% das adolescentes sofrem algum tipo de violência na vida.

Portanto, investir nas meninas, torna-se um passo essencial para apoiá-las em busca da transformação das suas vidas. A sociedade patriarcal em que vivemos normaliza estes eventos. Criando um círculo vicioso de perpetuação destas práticas. A escola e a educação podem ajudar a interromper este ciclo. Apoiar meninas é uma importante iniciativa não apenas para mudar a vida das futuras pesquisadoras, mas para fazer avançar a ciência, inserindo novos olhares e pautas na investigação, de temas antes não priorizados na investigação cientifica. 


O destaque no ranking é uma conquista importante, e a senhora já recebeu vários outros prêmios pelo seu trabalho. Como tais reconhecimentos podem contribuir para a melhoria das pesquisas nessa área? 

DM- O sentido destes prémios é de abrir caminhos para novas pautas, destacar o papel e a contribuição das mulheres na ciência, a importância das parcerias, da solidariedade entre as mulheres. A luta das mulheres na ciência inclui superações, seja das múltiplas jornadas, a falta de apoio na carreira, a sociedade patriarcal e o machismo estrutural. A participação da mulher na ciência agrega novos olhares, novas perguntas e temas, como a perspectiva do cuidado em saúde e da diversidade. 

Estudos apontam que estamos longe da equidade de gênero na pesquisa. Temos que avançar na representação equitativa, na inclusão de mais mulheres nas pesquisas. Só assim as pautas de investigação sobre gênero estarão contempladas e priorizadas.

Fazer pesquisa nesse país é um grande desafio, especialmente nos últimos quatro últimos anos com os ataques sistemáticos à ciência, as universidades, o negacionismo, os cortes de verbas e o não investimento na pesquisa. Felizmente isto mudou. Estamos retomando a normalidade da democracia, dos investimentos na ciência. Novos tempos. Sinto-me parte deste movimento de transformação, de ampliar espaços para mulheres e de novas pautas na investigação.