O cenário da desinformação no Brasil: entrevista com Yurij Castelfranchi

Júlia Rodrigues - 08-07-2024
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Cinco a cada dez brasileiros relatam se deparar frequentemente com notícias que parecem falsas – isso é o que diz a Pesquisa de Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil (2023), divulgada em maio, pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)

A pesquisa foi realizada pela primeira vez em 1987 e, desde 2006, vem sendo realizada periodicamente, na intenção de compreender como os brasileiros pensam e consomem temas relacionados à Ciência e Tecnologia. Agora, em sua sexta rodada, apresenta dados importantes acerca do cenário da desinformação pós-pandemia. 

O estudo, realizado em parceria com o Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entrevistou 1.931 pessoas com idade superior a 16 anos, em todas as regiões do país, a partir da aplicação de um questionário estruturado. Foram investigados temas diversos, como consumo e hábitos de informação, percepção sobre riscos e benefícios da ciência, conhecimento sobre cientistas e instituições que se dedicam à produção do conhecimento e, também, desinformação.

Em entrevista à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Yurij Castelfranchi, pesquisador, jornalista, divulgador científico e um dos consultores da pesquisa, explica que a desinformação está “visivelmente associada à crença em grandes riscos ou inutilidade das vacinas, a movimentos negacionistas como o terraplanismo e ao negacionismo climático e, especialmente, desassociando o fenômeno a responsabilidade humana”.

Castelfranchi é professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Instituto Nacional para Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT). Atualmente, também coordena o Observatório interdisciplinar InCiTe (Inovação, Cidadania, Tecnociência) e o Curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da UFMG, o Amerek. Nesta entrevista, ele também comenta os resultados da pesquisa O que os jovens brasileiros pensam da ciência e da tecnologia (2024), divulgada em maio deste ano pelo INCT-CPCT. Confira!

Yurij Castelfranchi Fonte: Arquivo Pessoal

O que torna uma pessoa mais suscetível à desinformação segundo os dados da Pesquisa de Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil (2023)? 

Isso depende do tipo e do tema da desinformação. Em alguns casos, um fator importante é, como previsível, o grau de letramento científico, a escolaridade, o grau de consumo de informação científica das pessoas, mas, em outros tópicos, esse nível de conhecimento não é o fator mais importante.

Por exemplo, descobrimos que entre as pessoas que acreditam na teoria da conspiração da Terra Plana, a porcentagem de pessoas com ensino fundamental, graduados ou pós-graduadas é quase a mesma. Então, lá a vulnerabilidade não depende do grau de educação ou do conhecimento de conceitos científicos.


Em alguns casos, os fatores têm a ver com o conhecimento e, em alguns outros casos, com posições políticas, ideologias e valores morais. Tanto no caso das pessoas que consideram as vacinas inúteis ou perigosas, quanto no caso das mudanças climáticas, descobrimos que aquelas que declaram discordar da igualdade de oportunidade para homens e mulheres têm mais chances tanto de hesitar sobre vacinas quanto de negar as mudanças climáticas. Descobrimos também que os brasileiros e as brasileiras estão mais conscientes da importância e da existência desse fenômeno [desinformação/fake news] do que há quatro anos, quando foi feita a pesquisa anterior. Nesse caso, muitos brasileiros declaram que podem ter compartilhado fake news e alguns deles declaram terem feito isso mesmo suspeitando que a informação compartilhada estava errada.   

Então, sabemos que os brasileiros são uma parte importante da circulação das fake news. Não depende só dos algoritmos ou dos fabricantes dessas mentiras. Os brasileiros admitem, no caso dos adultos, uma faixa de 28%, ter compartilhado sem saber que a informação estava errada. Mas quase 10% dizem ter compartilhado alguma informação mesmo já sabendo ou suspeitando que pudesse estar errada.   

Os fatores que contribuem com isso são, em primeiro lugar, o índice de checagem, ou seja, as pessoas que dizem que não costumam conferir nem de onde veio a notícia, nem os autores que a escreveram. Eles também não comparam se têm a notícia parecida em outras fontes. E tem alguns fatores ligados a posicionamento político e, obviamente, o grau de conhecimento e a escolaridade também influenciam a chance de uma pessoa cair em uma desinformação e compartilhá-la. 

Quais são os elementos que podem nos ajudar a identificar as “fakes news” em C&T? 
Isso nós não aprofundamos nessa pesquisa específica. Investigamos se as pessoas acham difícil reconhecer a notícia falsa. Em geral, as pessoas que tendem a dizer que não são vítimas, não encontram notícias falsas, ou que acham que é muito fácil reconhecê-las, são aquelas que são mais vulneráveis à desinformação. E os que são mais conscientes de que existem muitas notícias falsas e checam têm menos chance de cair em fake news. Isso está claro pelos dados.   

No geral, a circulação de notícias falsas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente, saúde é bastante parecida com as demais, sobre políticas etc. Têm algumas características típicas. A primeira, ela se mostra com caráter de urgência. Tem ícone, ponto de exclamação, caixa alta, demonstrando ser algo urgentíssimo que a pessoa precisa saber. 

A segunda é um apelo a fortes emoções. Em primeiro lugar, [tem o objetivo] de preocupar o usuário com a saúde dele e da sua família. Tem sempre um argumento de ameaça urgente e isso o leva ao movimento de se preocupar com os seus amigos, conhecidos, parentes e compartilhar. 

E como terceiro ponto, muitas notícias desse tipo tendem a construir artificialmente uma dúvida, uma desconfiança das pessoas sobre as fontes oficiais das instituições, universidades, mídia oficial, jornalismo de qualidade, dizendo que tem alguma manipulação, que tem grupos, digamos, “do mal”, que tentam enganar as pessoas. 

Portanto, isso é o truque fundamental para você confiar mais nessas notícias muitas vezes anônimas, áudios de desconhecidos do que na mídia. Nesse caso, na checagem de fatos profissional, porque o argumento central nessas notícias começa justamente com essa suspeita conspiratória de que todo mundo, cientistas, os governos estão te enganado. Então, esses são três elementos bastante comuns.  

Diante dos resultados das pesquisas recentes, como é possível avaliar os impactos das fake news disseminadas pré e pós-pandemia na confiança dos brasileiros na ciência?
Podemos dizer que claramente teve um impacto grave. Ou seja, a desinformação está visivelmente associada à crença em grandes riscos ou inutilidade da vacina, a negar a existência de mudanças climáticas, especialmente, da responsabilidade humana e ao Terraplanismo. Isso está claro como impacto da desinformação pelos motivos que já mencionei. Logo, na hora de ver quem são as pessoas que acreditam nessas coisas, você vê que tem chance maior entre pessoas que dizem não checar, que pertencem a grupos mais radicalizados do ponto de vista ideológico. Então, está bastante claro que a desinformação achou um terreno fértil na pandemia.   

Porém, é importante dizer que esse impacto foi focado nesses grupos minoritários. Ou seja, apesar de uma campanha gigantesca, de um dilúvio de desinformação durante a pandemia sobre quase todos os temas, tanto de saúde quanto de ciência, e de política, essa parcela continua sendo uma minoria. Os brasileiros, por exemplo, que hesitam e negam a importância da vacina ou que dizem não querer se vacinar, são uma minoria.

Também são minoria as pessoas que negam as mudanças climáticas. Os dados mostram que 95% dos brasileiros dizem que elas existem. Porém, uma porcentagem preocupante, de quase de 20%, diz que as mudanças climáticas são causadas, principalmente, por mudanças naturais do meio ambiente. Mesmo sendo 20%, apesar de ser um número grande, claramente pela contribuição da desinformação, continua sendo uma minoria, então 80% dos brasileiros não são negacionistas climáticos. 

Então, o impacto existe, é importante, mas é um fenômeno que afeta grupos de brasileiros específicos, não o povo como um todo. Na verdade, uma grande maioria continuou se vacinando e confiando no cientista. Por exemplo, entre as fontes possíveis de informação, no Brasil, os cientistas continuam, tanto agora quanto eram antes da pandemia, entre as fontes consideradas mais confiáveis. Em primeiro lugar, tem cientistas e médicos. E, lá embaixo, bem distante, tem outras fontes respeitadas por uma parte da cúpula, como religiosos e militares. Mas cientistas e médicos são de longe considerados mais confiáveis para os brasileiros. 

Dessa forma, a desinformação tem um impacto, mas não afetou de forma tão grande, como parece pelo hater nas redes sociais, a confiança na ciência, nas universidades e nos cientistas. Os brasileiros continuam dizendo que ciência e tecnologia dão mais benefício do que consequências negativas para a humanidade. Continuam dizendo que não devemos cortar investimentos em ciência e tecnologia. Então, a desinformação não conseguiu destruir a confiança e o otimismo dos brasileiros sobre a ciência e tecnologia. 

De acordo com a pesquisa do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) O que os jovens brasileiros pensam da ciência e da tecnologia, em comparação com os adultos, como os jovens brasileiros consomem informações e qual sua confiança na ciência? 
No caso da pesquisa que desenvolvemos no INCT/CPCT, [O que os jovens brasileiros pensam da ciência e da tecnologia (2024)] que é focada nos jovens brasileiros, se destacam algumas diferenças quando comparada com essa pesquisa com o MCTI, que foi feita com os adultos. 

Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente se destacam como temas de maior interesse para os jovens. No caso de jovens que responderam estar Interessados ou Muito Interessados, Ciência e Tecnologia é até mais interessante que Esportes. No caso dos adultos, de longe, os maiores interesses são, principalmente, Religião, Saúde e Meio Ambiente.

Outra diferença importante é que os jovens, visivelmente, talvez por causa dos estudos, têm hábito de frequentar atividade ou espaços de democratização do conhecimento. Então, o jovem frequenta muito mais as bibliotecas, os museus, tanto de arte quanto de Ciência e Tecnologia, e dizem também ter assistido a palestras ou debates online sobre ciência e que participaram da Atividade da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia e assim por diante. 

O grau de confiança que eles [jovens brasileiros] declaram nos cientistas é muito alto, igualmente na população adulta e empata com grau de confiança nos professores. Então, os professores, apesar de muitos ataques e de uma desvalorização da profissão - de serem muitas vezes agredidos por pares e até mesmo por alunos nas escolas – continuam sendo a fonte mais confiável de informação para a maioria dos jovens. Este é um dado muito importante. 

No caso dos jovens, a confiança nos cientistas é parecida com a dos adultos, mas ela se destaca mais ainda do que a dos adultos se comparada com as outras fontes, como militares, religiosos e jornalistas. Então, o jovem, confia muito mais no cientista do que nessas outras fontes.   

Como você avalia o letramento midiático e digital no combate à desinformação? E qual a sua perspectiva acerca da utilização das informações verificadas pelas agências de fact-checking como forma de combater infodemias como ocorreu durante a pandemia e agora durante as enchentes no Rio Grande do Sul? 
É importante dizer que ambas as coisas, campanhas de letramento e campanhas para desmentir notícias falsas, são cruciais, são absolutamente necessárias. Sem elas, não vamos em frente, mas nossos dados mostram que não são suficientes. Sozinhas, elas não resolvem o problema. Porque muitas das pessoas que dizem acreditar em afirmações que negam evidências científicas, por exemplo, são as pessoas que dizem que não vão consultar checagem de fatos e são pessoas que não necessariamente têm letramento digital baixo. 

Como mostrei em alguns casos, são mestres e doutores entre as pessoas que negam as vacinas, as mudanças climáticas e que a Terra seja redonda. Então, nem sempre a causa principal da pessoa acreditar ou compartilhar a desinformação é a falta de conhecimento, ou a falta de letramento. Nem sempre desmontar as notícias falsas, embora seja crucial, conseguirá alcançar essas pessoas porque elas, na verdade, rejeitam as fontes que, por motivos ideológicos e de identidade, decidiram que não são confiáveis. 

O problema é mais complexo, porque está claramente associado a questões políticas. Isso acontece porque os fabricantes de mentira, em muitos casos, têm objetivos políticos, então eles de propósito acoplam determinado tipo de mentira e de narrativa a determinado tipo de desinformação. Alguns grupos decidem cavalgar, por exemplo, o movimento antivax, por motivos políticos. Assim, fazem uma narrativa que, se você tem certos valores morais, tem que rejeitar a vacina.

As pessoas tendem a cair nessa coisa [desinformação] não por serem ignorantes, mas porque decidem confiar mais em pessoas que eles acham que compartilham seus valores morais. Constroem sua própria ignorância, elas jogam fora, dobram as notícias chegadas, por exemplo, e só pegam como base aquelas das fontes que elas acham moralmente mais compatíveis, então, nesse caso, o letramento midiático não resolve. 

Quais são as perguntas que orientarão os próximos passos na análise dos resultados das pesquisas?  
Os próximos passos da pesquisa serão em duas frentes. A primeira, que é muito importante, é pensar: “Bom, o que fazer com isso?”. Então, estamos tentando montar experimentos concretos para ver quais técnicas e táticas de combate à desinformação podem ser mais eficientes. Já temos muita literatura sobre isso, obviamente: Qual o efeito do fact checking? Qual o efeito do letramento [midiático]? 

Estamos tentando contribuir nessa área mostrando que cada ingrediente pode ser necessário, mas não é o suficiente, ver qual a estratégia integrada de combate à desinformação pode ser mais efetiva, especialmente, com esses grupos específicos que a gente descobriu nos dados de percepção. 

E a outra vertente será aprofundar essas pesquisas com pesquisas também de observação etnográfica com entrevistas para entender melhor os raciocínios e argumentos. As pesquisas quantitativas nos dão indícios de quais grupos são mais suscetíveis, mas o como e o porquê, para serem bem destrinchados, vão precisar de observações mais aprofundadas para entender em cada tipo de caso o que realmente está acontecendo nesses grupos, na interação entre eles e também na mente dessas pessoas. 

O que significa observar “a percepção pública da ciência" e, porque é importante acompanhar esse indicativo. 
Esses estudos de indicadores de percepção pública da ciência são fundamentais não só para nós, acadêmicos, como base para a pesquisa científica, mas também para políticas públicas. Tanto que, nos Estados Unidos, são feitos há mais de 50 anos regularmente. Na União Europeia, são feitos também há décadas regularmente e costumam fazer parte dos indicadores de Ciência e Tecnologia do país, ou seja, não são indicadores de cultura científica, são indicadores que mostram se a ciência de um país está funcionando.   

Organizações transnacionais produzem esses indicadores: as Nações Unidas (ONU), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por que isso? Se só medirmos se temos bastantes doutores, se registramos bastantes patentes, se publicamos bastantes artigos científicos do nosso país, não é suficiente para ver se a ciência e a tecnologia brasileira serão competitivas no futuro. É fundamental saber o que as pessoas fazem com essa ciência. 

É essencial saber se os jovens acham que uma carreira científica é viável para eles ou não. É indispensável saber se a população rejeita ou não certas tecnologias e por quê. Se confiam no cientista. Tudo isso faz parte do sistema de ciência e tecnologia. Esses indicadores são bem cruciais politicamente, a meu ver, e deveriam estar inclusos com as demais variáveis, numa avaliação de políticas públicas, não só de educação, mas também de Ciência e Tecnologia.   



*Conteúdo produzido em parceria com o Amerek - Curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)