Com apoio da FAPEMIG, o Núcleo de Estudos em Fermentações (Nefer/Ufla) investigou e selecionou leveduras para a produção de cachaça da alambique, cafés especiais e produtos plant-based
O processo de fermentação já é conhecido pela humanidade há milhares de anos. A técnica ancestral que permite a modificação e preservação de alimentos está na mesa dos mineiros desde o queijo à dose da cachaça. Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos em Fermentações (Nefer) do Instituto de Ciências Naturais da Universidade Federal de Lavras (Ufla) atuam na fronteira dos estudos em fermentação transformado cadeias produtivas.
Sob a coordenação da pesquisadora Rosane Freitas Schwan, o Nefer investigou e selecionou leveduras capazes de aperfeiçoar a produção de cachaça de alambique, transformou cafés tradicionais em cafés especiais e caracterizou microrganismos envolvidos no processo de preparo de alimentos indígenas. “A participação da FAPEMIG foi um estímulo. Uma escada que me permitiu equipar laboratório, ter estudantes e difundir as ideias de alimentos fermentados”, relembra Rosane.
O grupo de estudos surgiu em 1996, idealizado pela pesquisadora em formato de reuniões semanais entre alunos interessados na linha de pesquisa com o objetivo de discutir projetos resoluções para problemas que afetam a agroindústria. O Nefer foi formalizado em 2010. Desde então, o projeto foi crescendo. “Hoje somos em torno de 30 membros, contando com alunos da graduação, pós-graduação e oito pós-doutorandos que nos ajudam nesta trajetória de ensinar que fermentar é muito bom”, contabiliza Rosane.
Núcleo de Estudos em Fermentações (Nefer) em homenagem a prof. Rosane Schwan durante o evento de comemoração dos 40 anos da FAPEMIG na Ufla,2025. Créditos: Júlia Rodrigues/ACS FAPEMIG
Atualmente, além de Rosane, o grupo conta com a orientação dos professores do Departamento de Ciência dos Alimentos, Disney Ribeiro Dias e Carla Luiza da Silva Ávila do Departamento de Zootecnia da Ufla. O grupo tem se dedicado a compreender o papel dos microrganismos envolvidos no processo de fermentação de silagens e de alimentos como o cacau e o café, além de desenvolver novos produtos a partir dos processos de fermentação. O Nefer ainda propõe apresentar o universo da microbiologia e fermentações a turmas do ensino médio das escolas públicas vizinhas.
Do laboratório ao mercado
A mágica da fermentação acontece em escalas invisíveis ao olho nu, sendo um processo bioquímico essencial na vida das bactérias e um tipo muito simples de fungo, as leveduras. Na ausência de oxigênio, esses seres convertem os açucares disponíveis em energia para viverem. Por trás da produção de vinhos e cachaça, a fermentação é responsável por produzir o álcool e os compostos fenólicos e dos sabores distintos dos cafés especiais e queijos tradicionais.
As pesquisas no Nefer iniciaram em 1996 a partir da fermentação do cacau, café e, especialmente, cana-de-açúcar, a matéria-prima da cachaça. Naquele contexto, alguns produtores da indústria de cachaça de alambique em Minas perdiam toneladas de cana produzindo cachaças com alto nível de acidez.
Foram dez anos de pesquisa visitando alambiques nas regiões Sul e Norte de Minas, São Paulo e Espírito Santo. “Buscamos por leveduras que fossem robustas o suficiente e que os produtores pudessem utilizar, sem deixar de perder a eficiência desse processo”, relembra, Rosane. Após investigar cerca de 1800 leveduras selvagens, a pesquisa conseguiu isolar uma cepa da levedura Saccharomyces cerevisiae, capaz de conferir à cachaça menor acidez e maior rentabilidade. A tecnologia foi transferida para a LNF Latino Americana como LNF CA-11, em 2007.
O produtor João Mendes compartilha que o seu pai, fundador da Cachaça João Mendes, procurou a universidade em busca de tecnologia. Para João, a pesquisa teve papel fundamental na melhoria da qualidade da cachaça e na garantia do padrão da bebida produzida pelo seu alambique. “Sem o trabalho da universidade esse processo seria impossível. Ajudou não só a João Mendes como toda a cadeia a cachaça artesanal”, conta.
No campo, as leveduras também têm papel importante na conservação do alimento de rebanhos. Em épocas de seca, quando a produtividade cai por causa da escassez dos pastos, o armazenamento do ensilado é uma alternativa viável. No processo chamado ensilagem, as bactérias selecionadas fermentam o açúcar da forragem verde guardada nos silos produzindo álcoois e ácido lático que inibem o crescimento de microrganismos que podem deteriorar o alimento.
Em 2005, iniciou-se no âmbito do Nefer as pesquisas de Prof. Carla Luiza da Silva Ávila, com objetivo de isolar, caracterizar e selecionar bactérias da forragem da cana-de-açúcar para esse fim. Cerca de dez anos depois, as pesquisas resultaram no que foi a segunda transferência de tecnológica da Ufla, em parceria com a empresa de fermentação biológica, Lallemand SAS, da França.
Cafés Especiais
Em Minas Gerais, a fermentação está presente na tradição do Estado no processo de fabricação dos nossos alimentos mais tradicionais como a cachaça e o queijo. Com a ajuda do Nefer, a técnica chegou aos cafezais, transformando os cafés tradicionais em cafés especiais.
A partir de 2010, iniciaram as pesquisas que culminaram no desenvolvimento de uma técnica de fermentação que consiste em submeter os grãos de café maduros ao processo de Fermentação por Anaerobiose Auto-Induzida (Siaf), do inglês, Self Induced Anaerobiosis Fermentation. Armazenados em birreatores, os grãos sofrem a ação de leveduras selecionadas que produzem, no seu processo bioquímico, ésteres e ácidos - compostos orgânicos que conferem mais sabor e aroma à bebida.
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A pesquisa partiu, inicialmente, da busca por conhecer os microrganismos presentes dos terroirs, ou seja, onde o café é produzido, colhido e processado. Em 2019, a Ufla iniciou as negociações com a empresa Syngenta de tecnologias para o mercado agrícola, para a transferência tecnológica. A tecnologia deve estar pronta para ser transferida a partir de 2028. Até então, duas leveduras já foram testadas em vários locais e outras cinco serão testadas nos próximos três ou quatro anos consecutivos, a fim de verificar a reprodutibilidade do processo.
A produtora de café Marisa Helena Contreras, da Fazenda Capoeira Coffe, é uma das beneficiárias da tecnologia. Sua propriedade, localizada em Areado, (MG), é região de baixas altitudes, o que dificultava a produção de cafés de qualidade. “Com as leveduras, nós conseguimos transformar o processo. Não são só leveduras para nós, foi a transformação dos nossos negócios, do nosso café e da vida da minha família. Passamos de produtores de café commodity para produtores de cafés especiais e esses cafés tem aberto portas importantes para a fazenda Capoeira Coffe”, compartilha.
A produtora de café, Marisa Helena Contreras, da Fazenda Capoeira Coffe segurando café especial produzido a partir da fermentação desenvolvida pelo Nefer, 2025. Créditos: Júlia Rodrigues
Alimentos Indígenas
Desde 2001, o Nefer desenvolveu pesquisas sobre o processo de fermentação a partir de alimentos indígenas. A pesquisa partiu da tese de Euziclei Gonzaga de Almeida, hoje, professor no Departamento de Botânica e Ecologia, Instituto de Biociências da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Com apoio da FAPEMIG e em parceria com o povo indígena Tapirapé, localizados na cidade de Confresa – MT, investigaram a microbiota de alimentos fermentados indígenas.
O pesquisador explica que a fermentação está muito presente na preparação dos alimentos típicos dos Tapirapé. A exemplo disso, está a farinha de puba produzida a partir da fermentação da mandioca brava, que apresenta alta concentração de ácido cianídrico, o que a torna imprópria para consumo se não for preparada adequadamente.
No processo chamado de pubagem, a mandioca é deixada de molho na água para fermentação, e para que o ácido cianídrico seja liberado. A mandioca é prensada e torrada o que resulta em uma farinha tradicionalmente consumida com peixe e carne. A farinha de puba também é utilizada no preparo de uma bebida chamada cauim, outras vezes feita a partir de substratos como arroz, mandioca, amendoins e sementes de algodão.
Euziclei explica que durante o preparo do cauim, as bactérias utilizadas na fermentação estão na saliva. É através da mastigação da batata-doce que é adicionada ao recipiente de preparo que a bebida é “inoculada”. “Nós fizemos a coleta de amostras de cauim feito de arroz com mandioca e isolamos os microrganismos envolvidos no processo fermentativo”, conta Euziclei.
Em diálogo com os representantes indígenas, o grupo de pesquisa acordou compartilhar o conhecimento produzido tendo em vista as próximas gerações. “Nós devolvemos aos indígenas as cópias dos trabalhos para que pudessem utilizar como resgate da cultura e para que as gerações mais jovens pudessem acessar esse material e preparar as bebidas fermentadas”, conta.
Ainda no âmbito do Nefer, também foram isolados os microrganismos envolvidos na produção do caxiri – bebida de fermentação alcoólica utilizando a mandioca brava produzido pelos povos Juruna, do Parque Indígena do Xingu. Além de parcerias com o povo Javaé do estado do Tocantins.
A partir da pesquisa com alimentos indígenas, o grupo passou a explorar a fermentação para o desenvolvimento de alimentos em dietas plant-based, ou seja, que partem da utilização de plantas, cereais, legumes sementes e amêndoas. Os produtos desenvolvidos são uma alternativa para alérgicos à proteína do leite e intolerantes à lactose.
Segundo Rosane, “As leveduras também produzem compostos microbianos que melhoram as barreiras intestinais”. As bebidas fermentadas a partir desses ingredientes trazem inúmeros benefícios, entre eles, o fortalecimento do sistema imunológico e a diminuição dos níveis de açúcar no sangue. O grupo também trabalha com a hipótese que relaciona o equilíbrio da microbiota intestinal à saúde mental.
E em projeto recente, apoiado pela FAPEMIG, desenvolveram um kombucha – bebida fermentada de origem chinesa. Com sabor ácido e efervescente, é uma alternativa saudável para os refrigerantes com alto poder probiótico. “O inhame tem fatores anti nutricionais que precisam de uma enzima chamada fitase para que ele seja mais bem digerido. Nós conseguimos isso”, Rosane orgulha-se ao relembrar. Dentro dessa linha de pesquisa, o grupo desenvolveu uma base de sorvete a partir do inhame fermentado. Em 2024, a Ufla obteve a concessão da patente pelo desenvolvimento do método de produção do sorvete com apoio da FAPEMIG.
Sorvete de Inhame produzido pelo Nefer, 2025. Arquivo Pessoal
Proteção Intelectual
Para Rosane, proteger o conhecimento em fermentação é uma maneira de garantir exclusividade, qualidade dos produtos e segurança no processo de reprodução. “Eu acredito que todo conhecimento deve ser protegido. A maneira com que traduzimos isso para a sociedade pode ser muito simplória para que alguém tente executar e não dê certo. Então, quando o conhecimento é protegido, ele protege também a sociedade de equívocos”, explica.
A pesquisadora defende que a proteção intelectual deve ser estimulada dentro das universidades. “De uma maneira geral, as universidades brasileiras estão melhorando a sua trajetória em termos de proteção intelectual. Mas ainda falta muito para o empresariado buscar o conhecimento dentro das universidades de uma forma financiada e não só de forma gratuita”, comenta.
Novas fronteiras
O Nefer segue expandindo suas pesquisas. Outro foco do projeto tem sido desenvolvido no Nefer com apoio da FAPEMIG. Em 2023, o trabalho Valorização de frutos do semiárido mineiro na elaboração e avaliação proteômica e metabolomica de bebidas fermentadas foi aprovado na Chamada Ciência Por Elas. Serão investidos cerca de R$ 460 mil no desenvolvimento de bebidas fermentadas a partir de frutas típicas do Norte de Minas Gerais.
Outro foco da pesquisa revela-se diante do que Rosane nomeia de “transição das culturas”, a partir da retomada do cultivo de café na Paraíba e a crescente do cultivo de cacau em Minas Gerais. “Várias culturas que nós tínhamos tem mudado de um habitat para outro e isso muda a microbiana a ser conhecida. Essa é uma nova tarefa que talvez demore um pouco, porque é pesquisa básica”, conta.
A pesquisadora adianta que o Nefer trabalha em conjunto com a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) para o desenvolvimento de chocolate mineiro. “Junto com a Unimontes, temos trabalhado com projetos para verificarmos qual o melhor processo de cacau para que dê o melhor chocolate em Minas Gerais”, adianta Rosane.