Outro lado da história: Pesquisas arqueológicas redescobrem a chegada do homem à Antártica

Júlia Rodrigues - 25-10-2022
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A chegada dos humanos à Antártica povoa o imaginário coletivo com histórias de naufrágio e grandes atos de valentia. O título de nação descobridora deste continente é disputado por interesse à posse da soberania do território, riqueza de metais e seu reservatório de água doce. Somente após o Tratado Antártico, assinado em 1959, os pedidos de soberania foram congelados, além de proibidas as atividades não científicas no território.

Hoje, uma nova narrativa historiográfica é construída. Ao analisarem objetos encontrados na Península Byers nas Ilhas Shetland do Sul, o Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas (LEACH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem feito importantes descobertas sobre os verdadeiros protagonistas das primeiras expedições ao continente gelado. Os sapatos, cachimbos e garrafas encontrados são pertencentes a caçadores de focas e leões marinhos que viajavam em companhias internacionais com datação de períodos anteriores a chegada do Capitão William Smith em 1819.


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Descoberta do sítio arqueológico


A Península Byers, na Ilha Livingston é especialmente conhecida pela sua grande biodiversidade, o que chamava atenção de foqueiros e caçadores de leões marinhos que abasteciam o mercado capitalista em desenvolvimento por volta do final do século XVIII e no início do século XIX. As expedições de caça tinham como objetivo explorar matéria-prima como azeite de baleia e de elefantes marinhos usado para iluminar as cidades e também por indústrias farmacêuticas, além de pele de foca para a indústria têxtil.

Nesta região foi encontrado um antigo abrigo utilizado por estes grupos contendo uma vasta coleção de objetos reveladores e surpreendentemente bem conservados. “As temperaturas baixas da Antártica funcionam como um grande freezer. Sapatos da classe trabalhadora que sumiriam em dez a quinze anos são preservados por 250 anos”, conta o coordenador do projeto Paisagens em Branco, Andrés Zarankin, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG.

O professor explica que a análise destes objetos, como, garrafas, cachimbos e sapatos, é especialmente importante para redescobrir a história do homem na Antártica, pois revelam histórias que não foram descritas oficialmente. Ele explica que a maioria dos tripulantes não sabia ler, desta forma, os documentos eram escritos pelos capitães dos navios que não desciam à terra.

Sapatos encontrados no sítio arqueológico
Fonte: LEACH - UFMG  


“A Arqueologia é o estudo das pessoas a partir da cultura material, dos objetos e vestígios das atividades humanas. Qualquer pessoa, ou grupo desde as mais ricas até as mais pobres, produz ou manipula objetos”, explica Zarankin. “Dessa forma, a arqueologia tem o potencial de estudar qualquer pessoa e qualquer grupo social, e neste caso, aqueles que praticamente são invisíveis nos documentos escritos”.

Quem são, onde viviam, o que faziam? 

Os navios que os traziam para a Antártica vinham de países como Inglaterra, Holanda e Estados Unidos. Antes disso, aportavam em outros continentes embarcando caçadores de diversas localidades. Os Estados Unidos, por exemplo, traziam da Ilha de Açores, em Portugal, caçadores conhecidos pela sua excelência. A tripulação era, assim, formada por pessoas de diversos povos e idades. Zarankin cita que foi encontrado entre a coleção de sapatos um par que poderia pertencer a um adolescente de quatorze a quinze anos, além de um crânio pertencente à uma mulher aborígene.

As viagens duravam entre seis meses e dois anos. Após desembarcarem no destino, os grupos formados por três a seis pessoas construíam abrigos ao lado de afloramentos rochosos onde ficavam durante um período de cinco a 15 dias. As paredes eram feitas de pedras e utilizava-se vértebras de baleia como mobiliário. Costelas e mandíbulas para fazer o teto sobre qual colocavam lonas, pele de focas ou de elefantes marinhos. Muitas vezes, havia outro refúgio onde eles processavam os animais, tiravam a pele das focas ou ferviam os pedaços de elefante marinho para extrair o azeite.                                                                                                 

 

 Pesquisadores analisam abrigo utilizados por caçadores de leões marinhos.
Fonte: LEACH -UFMG

                                                                 

Zarankin explica que a exploração predatória dos animais nativos trouxe impactos que podem ser percebidos até os dias atuais. “O preço dessas mercadorias foi sobredimensionado. Para que fosse rentável a ida para a Antártica era preciso caçar mais animais, inclusive, fêmeas grávidas”, explica. Os primeiros comerciantes encontraram presas em abundância, mas, com o passar do tempo, elas se tornaram escassas. "Se no início de 1820 eles caçavam 15 mil animais há cada viagem, após de 5 anos estes números não passavam de 15 animais caçados. Esse foi o nível do estrago".


Divulgação Científica

Zarankin explica que a Arqueologia por muito tempo não conversou diretamente com o seu público e permaneceu entre pares, mas novas maneiras de pensar a comunicação científica têm levado a novas perspectivas direcionadas à atender o interesse do seu público. “De 20 a 30 anos para cá, a Arqueologia tem desenvolvido algo que chamamos de Arqueologia Pública que é precisamente a interação entre o arqueólogo cientista e o público, mas não apenas para dizer o que é certo, e sim para estabelecer diálogos”, comenta Zarankin.

A equipe do LEACH, tem empregado tecnologias de ponta na investigação e registro destes sítios arqueológicos. Utilizando a Leica ScanStation P20®, um equipamento de escaneamento a laser, é possível registrar o espaço e os objetos com precisão milimétrica. Desta forma, mesmo que o sítio venha a colapsar, as informações sobre suas características ficarão registradas. Todos esses conteúdos são disponibilizados em uma base de dados pública pela UFMG . É possível, por exemplo, baixar os arquivos e imprimir em uma impressora 3D a réplica dos materiais arqueológicos, e ter acesso a todas as publicações do LEACH . Também é possível visitar os sítios com óculos de realidade virtual.           

 

 Pesquisadores realizam escaneamento do sítio arqueológico

Fonte: LEACH/UFMG

Com o objetivo de trazer conteúdos mais lúdicos aos seus públicos, o projeto desenvolve hoje um jogo chamado “Aventura Antártica – Arqueologia no continente gelado” disponível apenas em demo . O jogo é dividido em dois momentos: em um deles, o jogador é um dos foqueiros e precisa realizar algumas missões interagindo com os objetos encontrados nos sítios arqueológicos reais. Em outro momento, ele faz parte da equipe de arqueólogos, interagindo com personagens baseados na equipe real do LEACH.


Parcerias e perspectivas 

A importância deste trabalho de revisão narrativa atraiu iniciativas internacionais que se somaram ao projeto como o Museu Nacional de História Natural do Chile, a Universidade do Estado do Colorado e o Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet - Argentina). No Brasil, além da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), apoiaram o projeto o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), a Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM) e o Mediantar.

Zarankin explica que o projeto que tem se dedicado a reforçar o potencial científico do Brasil e que deseja ter a oportunidade de terminar nos próximos quatro anos o escaneamento dos sítios arqueológicos. Ele cita como meta o aprimoramento da base de dados, a conservação do vasto acervo hoje localizado na UFMG, além da divulgação dos resultados entre pares e público não especializado. Para que isso seja possível, Zarankin reforça a importância da destinação de recursos para os a conclusão dos objetivos finais do projeto além do incentivo à presença das Ciências Humanas nas pesquisas realizadas atualmente pelo Brasil na Antártica.

Como próximos projetos, o coordenador antecipa que planeja o início de um estudo com pesquisadores especializados no Ártico. “Outro elemento que o Brasil está muito interessado agora é em fazer uma parceria em colaboração de estudos comparativos preliminares entre Antártica e Ártico”, revela.