O mês de agosto começou com o Supremo Tribunal Federal (STF) decidindo pela inconstitucionalidade da tese de “legítima defesa da honra”, que agora não poderá mais ser usada para absolver acusados de feminicídio durante julgamentos em tribunais do júri. Ao mesmo tempo, outro caso de violência contra uma jovem, em Belo Horizonte, repercutia na imprensa. A situação de violência contra a mulher – que foi violentada após ser deixada inconsciente na porta de sua casa durante a madrugada – não é um caso isolado, mas foi fortemente explorada pela mídia e está sendo comentada em todo o Brasil.
Especialmente neste período, em que se celebra o mês de conscientização pelo fim da violência contra as mulheres, também conhecido como Agosto Lilás, é importante destacar o valor da informação para criar perspectivas de enfrentamento a esse tipo de violência. A pesquisadora da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg), Unidade Frutal, Marcela Fernanda da Paz de Souza, desenvolve diversas pesquisas relacionadas à violência contra a mulher e considera fundamental disseminar informações sobre o tema e explicar a forma como a revitimização acontece.
“São três tipos de revitimização. O primeiro é quando a mulher sofre a agressão de fato, no momento do acometimento do crime; já a revitimização secundária é ocasionada pelo aparelho estatal, quando a mulher busca apoio e pode ser submetida a constrangimentos (no inquérito policial, na fase judicial, ou em algum outro momento desse processo de tutela do estado); e o terceiro tipo é quando a sociedade, muitas vezes por meio da mídia e das redes sociais, reforça o julgamento da mulher que sofreu violência. Isso pode ocorrer quando as pessoas perguntam o que a mulher fez para apanhar ou quando as pessoas comentam sobre o tipo de roupa que a mulher estava vestida, por exemplo”, explica Marcela.
Para entender a questão, um dos trabalhos desenvolvidos pela pesquisadora buscou justamente investigar como a imprensa produz o enquadramento e as narrativas sobre essas mulheres na mídia, a fim de verificar se as matérias geram essa revitimização. O trabalho é coordenado por Marcela, com o apoio da bolsista Sabrina Souza Macedo, que participa do Programa de Apoio à Iniciação Científica e Tecnológica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Pibic/FAPEMIG).
Sabrina tem 23 anos, está no oitavo período do curso de Direito e conta que a sua percepção acerca da importância dos veículos de comunicação no combate à violência contra a mulher foi desenvolvida após a participação na pesquisa. “Nossas leis são fundamentais, mas a mídia também tem grande relevância no enfrentamento a esse tipo de violência. Como mulher, me sinto diretamente afetada pela temática e acredito na importância da divulgação de informações e dos centros de apoio para que nós, mulheres, não nos sintamos sozinhas”, avalia a bolsista.
Com a análise de notícias produzidas em 2020 e 2021, e do estudo qualitativo dos comentários das notícias, percebeu-se que, em muitos casos, essa revitimização acontece na forma como a notícia é produzida e também nos comentários dos leitores, reforçando aspectos misóginos e patriarcais. “A Cartilha Instrucional Mídia e Violência Contra a Mulher foi produzida pelo grupo neste contexto e busca orientar empresas de comunicação, escolas, sistemas penitenciários e organizações não-governamentais acerca do tema para evitar esse tipo de situação. É importante lembrar que o papel de denunciar a violência não é apenas da mulher, mas de qualquer pessoa que saiba da situação”, acrescenta Marcela.
Mulheres que participaram do vídeo para as redes sociais: Marcela da Paz, Fernanda (assessoria de comunicação UEMG Frutal), Daniela Moreira, (jornalista e funcionária do laboratório de audiovisual da UEMG Frutal), Mary Eva Fernandes, discente de Jornalismo da UEMG, Ana Carla (Projeto Acolher), Laís (coordenadora do CRAM Frutal), Adriana (Projeto Acolher). Foto: Uemg/Frutal
Delegacia Virtual
Outro estudo conduzido pela pesquisadora, intitulado As Tecnologias da Informação e da Comunicação e as Ações de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher: Um estudo de caso da Delegacia Virtual do Estado de Minas Gerais entre os anos de 2020 e 2022, investiga as denúncias que chegaram por meio desse canal virtual. A Delegacia Virtual funciona desde 2014, mas em 2020 ela também pode ser usada para realizar denúncias de ameaça, vias de fato, lesão corporal e descumprimento de medida protetiva.
Para entender o funcionamento desse canal, a pesquisadora recebeu o apoio do Ministério Público, das Polícias Militar e Civil de Minas Gerais, e coletou dados referentes ao uso da plataforma nos anos de 2021 e 2022, utilizando as prerrogativas da Lei de Acesso à Informação. “Esse período foi escolhido porque coincidiu com o auge do isolamento em função da pandemia da covid-19, em que a convivência com os agressores foi intensificada”, afirma a pesquisadora.
De acordo com dados do estudo, nesse período, foram registradas 5.146 ocorrências de violência contra a mulher por meio da Delegacia Virtual. Apenas em 2021 foram 2.504 ocorrências. Parte dessas vítimas, 44,1%, tinham graduação incompleta, completa ou pós-graduação. Em relação à cor da pele, 57,6%% delas se declaram não brancas. As mulheres que mais usaram a Delegacia Virtual para fazer a denúncia têm entre 25 e 34 anos, o que representa 38,33% delas. Em seguida, aparecem as mulheres de 35 a 44 anos, com 26,2% das ocorrências.
Sobre o meio usado para cometer a violência, os dados mostraram que a fala (33%) foi o principal deles, seguido pela internet ou SMS (18,7%) e pela agressão física sem o emprego de instrumentos (15,1%). Quando se considera a descrição da natureza da violência, 55,1% foram registradas como ameaças, 17,9% estão relacionadas ao descumprimento de Medida Protetiva, e 16,7% dos casos retratam lesão corporal. Os tipos de violência mais praticadas são a psicológica, que representou 55,1% dos registros do período, e a física, com 26,5%.
A pesquisadora ainda está analisando os dados coletados, mas acredita que eles já permitem concluir que a Delegacia Virtual é um canal fundamental, ainda que não deva ser o único disponível para as mulheres fazerem as denúncias em um Estado tão grande como Minas Gerais. “As mulheres vivenciam realidades muito distintas nas diferentes cidades do Estado. Nem sempre elas têm um celular com acesso à internet ou condição de usar a delegacia virtual. Por isso, acreditamos que incentivar as formas de divulgação dos serviços por meios comunitários – como rádio local, cartaz na igreja e nos clubes, carro com megafone – é muito importante”, avalia.
Para fortalecer essa frente de acesso à informação, a pesquisadora se juntou a outros grupos e instituições de Frutal e realizou Rodas de Conversa sobre o assunto, gravou vídeos para as redes sociais e esteve em todas as rádios da cidade para divulgar os encontros, inclusive disponibilizou notas informativas sobre a temática para serem veiculadas na grade de programação dos veículos.
A delegada Isabella Franca Oliveira, da Superintendência de Informações e Inteligência Policial, lembra que, além da Delegacia Virtual, a Polícia Civil tem o projeto “Chame a Frida”, que é um atendimento virtual, por meio de chatbot, direcionado a mulheres em situação de violência doméstica. “A ferramenta permite que a mulher tire dúvidas e, caso deseje ser atendida de forma presencial, realize o agendamento na Delegacia de Polícia. A ferramenta está disponível em vários municípios em Minas Gerais. Na falta de acesso aos meios digitais, as vítimas de violência podem recorrer a qualquer delegacia de seus municípios, mesmo não sendo uma delegacia especializada no atendimento à mulher”, acrescenta.
Para reduzir as situações de revitimização das mulheres nesses atendimentos, a corporação disponibiliza em seu site cartilhas que auxiliam nessa dinâmica, como a da Campanha Agosto Lilás e de Enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Em Belo Horizonte, as mulheres ainda podem contar com a Casa da Mulher Mineira, espaço de acolhimento especializado no atendimento à mulher, visando realizar um atendimento mais humanizado, com profissionais qualificados para adotar as providências cabíveis, objetivando solucionar o caso de cada uma.
Em relação ao trabalho de responsabilização e educação com os agressores, a Polícia Civil Implantou, em 2010, o Projeto Dialogar, com o propósito de reduzir a violência contra a mulher e diminuir os casos de reincidência dos agressores. O projeto funciona no modelo de polícia comunitária e busca estimular o diálogo entre os casais como forma de prevenção aos atos de violência doméstica. Ele é estruturado com base em dez encontros reflexivos realizados, separadamente, com homens e mulheres. Nos encontros, são abordados temas como o ciclo da violência, comunicação não violenta e aspectos legais, como a Lei nº 11.340, a Lei Maria da Penha. A equipe que coordena as reuniões do Projeto é formada por policiais, psicólogos e assistentes sociais, além de voluntários da comunidade.
Números da violência
De acordo com dados da 4ª edição do relatório Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil – 2023, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Data Folha, 21,5 milhões de mulheres com mais de 16 anos sofreram violência física ou sexual por parte de parceiro íntimo ou ex-parceiro ao longo da vida, no Brasil. Mais de 18 milhões de mulheres declaram ter sofrido violência no último ano. Dessas, 74% têm 16 a 44 anos, 65% são negras e 52% vivem no interior.
Fonte: Relatório Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil – 4ª edição, 2023.
Procuradoria da Mulher
Desde 2021, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) possui uma Procuradoria da Mulher e uma Bancada Feminina formada por debutadas que se dedicam a debater projetos de lei e outras legislações que envolvam a mulher. A Procuradoria tem três funções: atuar na promoção de políticas públicas e de ações educativas para mulheres, atender demandas relativas à discriminação e à violência contra a mulher e zelar pela participação efetiva das deputadas nos órgãos e atividades da ALMG. A programação da Procuradora da Mulher está disponível no site.
Serviços de apoio - violência contra a mulher Polícia Militar: 190 Polícia Civil: 197 Disque Denúncia: 181 Central de Atendimento à Mulher: 180 Disque Direitos Humanos: 100 |