A história de qualquer civilização é perpetuada por artifícios de preservação do patrimônio. Entre esses, a fotografia e a restauração andam juntas com o objetivo de contar uma história o mais fiel possível à realidade. Buscando aprimorar as técnicas e tecnologias para a área da conservação e restauração de bens culturais, os professores Alexandre Leão, Márcia Almada e Ivana Parrela, todos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolvem trabalhos de pesquisa e aprimoramento de técnicas por meio da fotografia, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
Como a base da fotografia é representar objetos reais por meio de imagens, os pesquisadores desenvolveram técnicas capazes de detalhar obras do Acervo Público Mineiro para estudo e preservação da história de Minas Gerais. Alexandre Leão, por exemplo, que é fotógrafo e coordenador do Laboratório de Documentação Científica por Imagem (iLAB) há mais de 15 anos, destaca que “a fotografia pode ser utilizada de várias maneiras, dependendo do propósito, sendo basicamente para fins artísticos ou para fins de registro técnico-científico”.
Exemplo de imagens com fins científicos são as capturas feitas por microscópios ou por satélites espaciais. Leão explica que é importante que a lente desses aparelhos esteja configurada corretamente para uma boa captação do que está sendo observado. No âmbito dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores para a restauração de obras, foram produzidos sistemas e configurações que buscam corrigir as cores capturadas pelas câmeras digitais, técnicas de fotografia em diversos ângulos, além de cursos e capacitações que visam ensinar as melhores maneiras de se produzir uma fotografia científica. Os professores ainda então trabalhando com a fotografia multiespectral de objetos do patrimônio cultural, o primeiro projeto nesta área no Brasil, com o propósito de recuperar textos que foram apagados pelo tempo ou de forma proposital em documentos antigos.
As pesquisas desenvolvidas por Leão, Almada e Parrela ganham relevância diante do Dia do Patrimônio Histórico (17) e do Dia Mundial da Fotografia (19), uma vez que os objetos de seus trabalhos são obras de arte em geral, incluindo documentos, pinturas, esculturas e outros. Várias instituições são parceiras dos projetos dos professores, como a Arquidiocese de Belo Horizonte, o Museu Mineiro, o próprio Arquivo Público Mineiro, dentre outros em Minas Gerais.
Almada, que é especialista em restaurações em papel, explica que o principal intuito é contar a história por meio do estudo dos documentos. “Com o trabalho que estamos desenvolvendo com a fotografia multiespectral, buscamos identificar e reconstruir trechos de documentos que foram apagados ou destruídos”. Leão explica também que o laboratório de fotografia científica utiliza diversas tecnologias de imageamento para a reprodução dos bens culturais da forma mais precisa possível.
“Temos dois grandes objetivos na fotografia científica: o primeiro é o registro do objeto para arquivamento, em que fazemos um trabalho muito apurado de cores para registrar a realidade cromática do objeto; e trabalhamos com uma outra área da imagem que é para o diagnóstico de bens culturais, no qual usamos técnicas de fluorescência, de ultravioleta, com diferentes comprimentos de ondas dentro da faixa visível (de cores) e o infravermelho, com o objetivo de identificar algumas perdas ou degradações para que o restaurador tenha ferramentas de imagem para realizar o seu trabalho com precisão e segurança”, explica o professor.
Atualmente, eles trabalham com a análise do manuscrito do século XVIII “Discurso Histórico e Político sob a Sublevação que nas Minas Houve no ano de 1720”, que retrata a revolta que aconteceu em Vila Rica e que ocasionou a execução do português Felipe dos Santos. “Identificamos no documento um processo inédito de correção ou ocultação de palavras com uma espécie de cera, como se fosse um corretivo de caneta. Por meio da fotografia multiespectral, pretendemos identificar as camadas por baixo dessa cera para saber o que foi ‘escondido’”, destaca Almada. De forma simplificada, o trabalho dos pesquisadores analisa as diversas camadas da luz e de pigmentos presentes na folha do documento com o objetivo de reconstruir o texto apagado.
Patrimônio Histórico, fotografia e pesquisa
De acordo com Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o Patrimônio Cultural Brasileiro é “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Marília Machado, presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) destaca que “o Patrimônio Cultural trabalha, em princípio, com a documentação e a definição do que proteger, seja para instrumento do tombamento, inventário ou registro, demanda estudos e fontes documentais. A fotografia científica é sem dúvidas uma fonte de informação muito preciosa, tanto para o patrimônio material, quanto imaterial”.
Com base nisso, o trabalho desenvolvido no iLAB, dentro do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor) da Escola de Belas Artes, é essencial para preservar o passado por meio da documentação fotográfica. Márcia Almada explica que a fotografia científica, então, está presente em todas as etapas da restauração de um bem cultural.
“Podemos dividir o trabalho dos restauradores em três grandes etapas: diagnóstico, quando são identificados por meio de exames invasivos ou não invasivos os danos apresentados por aquela obra; a análise social e física do tipo de reparação que deve ser aplicada para manter a essência da obra; e a própria documentação da obra depois de pronta para arquivamento”, pontua a professora, que cita também que para todas as obras restauradas é feito um dossiê de arquivos e análises para consultas futuras.
Com isso, ela ainda destaca a importância da fotografia não somente para registrar, mas para auxiliar no processo de restauração. “Quando usamos a fotografia atrelada a outros processos de análise, minimizamos a utilização de exames invasivos das obras, isto é, dependendo da técnica utilizada, não precisamos retirar microamostras para analisar microscopicamente”. Outra técnica também desenvolvida em parceria com os pesquisadores é a RTI, do inglês Reflectance Transformation Imaging, que pela geração de aproximadamente 48 imagens do mesmo objeto, porém iluminadas em diferentes ângulos, torna possível a identificação de texturas nas superfícies dos objetos que não são vistas a olho nu.
Com os projetos na área do patrimônio cultural, os pesquisadores pretendem inovar no processo de análise e restauração de bens culturais com a implementação de novas ferramentas e metodologias, como é o caso da pesquisa atual com a fotografia multiespectral. Ao mesmo passo, Leão destaca a importância de aproximar o público da fotografia científica para a construção de acervos de imagens dos objetos de forma mais precisa.
Fotografia científica X fotografia ilustrativa
De acordo com o dicionário Oxford Languages, a fotografia é a “arte ou processo de reproduzir imagens sobre uma superfície fotossensível (como um filme), pela ação de energia radiante, esp. a luz”. Partindo desse ponto, estudiosos apontam que, por ser uma representação, ela pode conter múltiplas interpretações e, com isso, contribuírem para o ensino e aprendizado, ao mesmo passo em que podem ser peças importantes para estudos científicos. Com isso, a fotografia, além do cunho artístico, também pode ser utilizada como ferramenta de análise.
“De forma muito simples, podemos separar a fotografia em dois grandes grupos: a fotografia artística e uma fotografia técnica. A primeira é usada como uma expressão artística. Já a segunda pode ser usada como uma ferramenta técnica”, descreve o pesquisador, ainda destacando que dentro dos artigos científicos estão presentes fotografias que deveriam conter aspectos técnicos, mas por causa da falta de conhecimento, grande parte delas não possuem boa qualidade.
O objetivo da fotografia técnica é gerar imagens confiáveis, independentemente do equipamento que está sendo utilizado, para gerar um banco de dados fiel. O professor reforça que para isso é necessário desenvolver um ambiente estratégico para que seja possível “imitar a realidade” e deixar a fotografia o mais próximo possível do objeto.
O advento da tecnologia
Para uma boa imagem, Leão explica que o equipamento utilizado é tão importante quanto o conhecimento do profissional que o utiliza. Desta forma, usando câmeras profissionais modernas ou até mesmo câmeras de smartphones, é importante gerar imagens que sejam de fato semelhantes ao objeto real. “Atualmente possuímos câmeras com boa resolução nos telefones. O que buscamos hoje é disponibilizar ferramental, como os aplicativos, para que os próprios pesquisadores consigam corrigir as cores das imagens”, diz o professor também relatando que faz parte de um projeto que está desenvolvendo um aplicativo para correções automáticas das cores.
Alexandre Leão explica que as câmeras digitais e dos smartphones possuem características que aumentam a saturação das fotos para que elas se tornem mais “bonitas”. Essa é, talvez, a principal característica que difere as imagens ilustrativas daquelas científicas. Enquanto a primeira preocupa-se com a beleza, a arte e a produção de significados abstratos, a segunda precisa ser uma representação confiável da realidade.
“As câmeras digitais geram imagens mais saturadas, ou seja, com as cores mais intensas do que a realidade e com maior contraste, exatamente com o objetivo de agradar os usuários. Você gera uma fotografia do pôr do sol em que a imagem é mais bonita do que a realidade que você está vendo, uma vez que os fabricantes fazem isso com o objetivo de encantar. Quando o propósito é técnico e científico, essa alteração das cores e do contraste prejudica, porque gera uma informação falsa daquele objeto que está sendo analisado”, destaca o professor.
A importância da fotografia científica
A fotografia científica é uma demanda de todos os pesquisadores que utilizam imagens em seus trabalhos. Leão destaca que a grande maioria usa tanto imagens para ilustrar como também para buscar informações dentro delas. “Quando acontece de uma pessoa precisar do conteúdo da imagem para análise, é fundamental que ela tenha tranquilidade e certeza de que aquela imagem que ela está usando seja confiável”, complementa.
A presidente do Iepha acrescenta que para o patrimônio material, como é o caso dos objetos de análise dos pesquisadores, antes mesmo da restauração, a fotografia científica abre espaço para análises interdisciplinares de proteção. “A fotografia pode apresentar indícios da volumetria, da ocupação do território, da arquitetura, da distribuição de espaço, entre outros fatores. Então, ela é fundamental como documento para propor o estudo da proteção ou tombamento do material”, explica.
O grande destaque da fotografia científica então é o poder que ela adquire ao ser utilizada para representar um objeto de acordo com a sua realidade. Qualquer representação muito distorcida da imagem pode gerar erros nas pesquisas, nos resultados, restaurações e análises. Márcia Almada completa que, em análises feitas a partir de fotografias técnicas, já foi possível identificar falsificações de obras artísticas comparados as fotos geradas ao longo do tempo.
Dicas para tirar uma boa foto para pesquisa
Durante a pesquisa com o Patrimônio Histórico de Minas Gerais, Alexandre Leão percebeu a complexidade técnica e científica para produzir uma fotografia confiável, principalmente se tratando de imagens que seriam utilizadas para restauração de bens culturais.
“O restaurador precisa de uma referência do objeto para realizar o seu trabalho, que, geralmente, é fornecida pela fotografia. Então, nesse aspecto, a gente trabalha com o objetivo de criar um arquivo que seja confiável o suficiente para um processo de restauro. Precisamos entender muito a parte da física quando se trata das luzes, temperatura de cor, características do sistema de iluminação, qual a qualidade de cor uma lâmpada de LED precisa ter, qual a cor espectral, ou seja, é uma gama muito grande de materiais e conhecimento técnico que o profissional que trabalha com a fotografia técnico-científica precisa dominar, e infelizmente isso nem sempre acontece”, destaca.
Com isso, o professor disponibiliza o iLAB como um espaço aberto para aqueles que quiserem conhecer e aprender mais sobre como fazer a fotografia científica. Qual equipamento usar, qual o melhor tipo de iluminação, a configuração adequada do equipamento, e todos os quesitos técnicos, incluindo o processamento das imagens em computadores. Isso porque, segundo o pesquisador, é mais importante conhecer as especificações técnicas do aparelho e como usá-las do que comprar um equipamento sofisticado sem saber como manuseá-lo adequadamente.
Como dica simples para que todos possam melhorar suas fotografias, Leão destaca que o mais importante é ficar atento à iluminação que está sendo utilizada. “É importante possuir uma fonte de luz mais intensa, podendo ser natural ou artificial, preferencialmente difusa, ou seja, que não provoque sobras muito projetadas e que esta luz esteja direcionada ao objeto a ser fotografado. ‘Foto’ significa luz e ‘grafia’ significa escrita, ou seja, sem luz não há uma boa escrita da imagem”, completa.