Vacina mineira irá tratar dependência de drogas

Vivian Teixeira e Vanessa Fagundes - 19-07-2023
5363


Cocaína e crack são os alvos do imunizante que já está pronto para iniciar testes em humanos

Estima-se que, em 2021, cerca de 22 milhões de pessoas tenham consumido cocaína, o que representa 0,4% da população adulta mundial. Os dados, apresentados no Relatório Mundial sobre Drogas 2023, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), ainda indicam que, no Brasil, essa foi a droga estimulante mais consumida no período. “Das pessoas que consomem a droga, sabemos que uma em cada quatro se tornará dependente, o que é uma quantidade expressiva e resulta em um importante problema de saúde pública”, conta Frederico Duarte Garcia, professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Garcia está à frente de uma equipe multidisciplinar, formada por pesquisadores das áreas de Química, Farmácia e Medicina, responsável pelo desenvolvimento da Calixcoca, uma vacina terapêutica para o tratamento da dependência em cocaína e crack. O estudo encontra-se em fase avançada, tendo obtido resultados promissores na fase de testes pré-clínicos. “Caminhamos, agora, para o registro desse medicamento na Anvisa para, com isso, conseguir a autorização para estudos com humanos”, esclarece o pesquisador.


Frederico Garcia, da Faculdade de Medicina da UFMG: vacina desenvolvida pelo grupo gera anticorpos para a cocaína e o crack e tem vantagens como menor custo e maior facilidade de estocagem e manuseio. (Foto: CCS/Faculdade de Medicina da UFMG)

A FAPEMIG é uma das agências financiadoras do trabalho, tendo apoiado, especialmente, o início do projeto. Por seu caráter inovador, a vacina já teve patente depositada no Brasil e nos Estados Unidos – da qual a FAPEMIG é cotitular – e, atualmente, concorre ao Prêmio Euro de Inovação na Saúde (veja reportagem aqui). Nesta entrevista, Frederico Garcia fala sobre as motivações para a pesquisa, principais desafios e etapas ainda necessárias para que o medicamento esteja disponível à população.

Voltando ao início do projeto, o que motivou a equipe de pesquisadores a desenvolver a vacina para tratar a dependência de drogas como a cocaína e o crack?  
Ainda que essa seja a primeira solução dirigida especificamente para o tratamento da cocaína, o projeto não nasceu exatamente para o tratamento da dependência, mas sim relacionado a uma questão ainda mais complexa. Nós ficamos sensibilizados, em 2014, quando o Ministério Público Estadual fez com que os médicos tivessem que declarar, obrigatoriamente, as grávidas dependentes de cocaína para que aquelas crianças fossem para adoção. Nosso ambulatório, de uma hora para outra, inundou-se de mulheres que, infelizmente, eram dependentes e estavam grávidas. Elas queriam, de alguma forma, manter a gravidez e a maternidade, inclusive como forma de superar a dependência. Foi quando resolvemos testar uma nova estratégia. Procuramos o professor Ângelo de Fátima, do departamento de Química da UFMG, que sintetizou uma molécula nova que se mostrou eficaz nas ratas grávidas. Os testes mostraram que esses animais, recebendo cocaína de forma regular durante a gravidez, tinham ganho de peso maior se comparado aos não vacinadas, menos abortos espontâneos e uma prole maior. Além disso, os ratinhos nasciam com os anticorpos para a cocaína e sentiam menos o efeito da droga, o que mostra que o efeito, provavelmente, é transmitido de uma geração para outra por via placentária e pelo leite materno.

A inovação principal da vacina é essa molécula sintética desenvolvida no departamento de Química? 
Essa é uma das inovações. Na verdade, a molécula sintética é uma plataforma de vacinas. Como comparação, as vacinas convencionais normalmente utilizam plataforma proteica, que pode ser uma proteína de vírus ou bactéria. A gente dá um passo importante nesse sentido ao usar uma molécula totalmente sintética para fazer uma plataforma vacinal. Existem vantagens: você controla todo ciclo de produção de maneira mais simples; tem um custo menor do que as vacinas proteicas; não precisa de cadeia fria para transporte e nem de refrigeração para a estocagem. Outra vantagem, quando comparada a vacina anticocaína em desenvolvimento nos Estados Unidos, é que o resultado obtido pela nossa equipe é melhor do ponto de vista de quantidade de anticorpos produzidos, o que, acreditamos, vá se manter em humanos também.

Clinicamente, o que caracteriza o vício, e qual a diferença do uso eventual?
A dependência é quando você passa a ter consequências negativas pelo uso de uma droga e isso evolui para uma perda de controle muito acelerada, que leva a diversos prejuízos. Esse processo todo vai culminar em dificuldades relacionais, perda laboral, e assim por diante. O uso ocasional, também chamado de uso recreativo – mas eu não gosto desse nome porque dá impressão que é possível fazer uso recreativo – difere da dependência porque, nesta, você tem perda de controle, estreitamento do leque de atividades e uma série de outras dificuldades que vão se acentuando com o tempo. A gente sempre lembra que a dependência não é uma doença de uma pessoa só, é uma doença de uma família inteira: cada dependente está ligado a pelo menos três ou quatro pessoas que estão ali batalhando, juntas, para tentar ajudar e que também sofrem as consequências dessa dependência.

Ainda em relação à tecnologia, o senhor poderia explicar a diferença entre uma vacina preventiva e uma terapêutica, como a Calixcoca? Por que a terapêutica parece uma vacina soro, não é?
Sim, é como se fosse uma vacina soro. O nome vacina não é o mais correto, o melhor seria “terapia de opsonização indutora de anticorpos anticocaína”. Mas optamos por vacina terapêutica, como é a vacina utilizada, por exemplo, no tratamento de alergias, no qual o objetivo é modular o sistema imune para que ele produza anticorpos. No caso, a gente produz anticorpos contra a cocaína. Toda vez que o indivíduo consome a droga, esses anticorpos se ligam a ela e impedem que passe por uma barreira protetora do cérebro, não agindo no sítio que deveria agir. Dessa forma, não causa a ativação do sistema de recompensa e a retomada da compulsão. Então essa não é uma vacina para ser usada como panaceia, nem como uma zarabatana, tipo lá na Cracolândia - já vimos umas ideias assim. Na verdade, ela é um complemento ao tratamento que já existe, um recurso que pode ser associado ao tratamento psicológico e a outras medidas, de forma a aumentar as chances desse paciente de manter-se em abstinência e reconstruir sua vida dentro de seus projetos individuais e sua subjetividade. Sabemos que esse medicamento vai ter mais sucesso entre os pacientes que entraram em abstinência e querem se manter em abstinência, pois, não percebendo o efeito da primeira recaída, eles dão seguimento a sua vida.

Foto: CCS/Faculdade de Medicina UFMG


Atualmente, o estudo encontra-se em qual fase?
Realizamos os testes em primatas, que foram muito favoráveis. Não observamos nenhum efeito colateral mais grave e tivemos produção de anticorpos tanto em ratos quanto em camundongos e em primatas, nas três espécies. Esses resultados foram publicados recentemente. Infelizmente, a pandemia de covid-19 interrompeu o avanço dessa vacina, pois os laboratórios da UFMG precisaram ser fechados. A equipe acabou tendo que devolver recursos e isso trouxe atrasos. Estamos, agora, caminhando para o registro do medicamento na Anvisa. Também estamos atrás de um parceiro que nos ajude a sintetizar os lotes piloto, que é uma obrigação imposta pela Anvisa para o registro de um medicamento. Após essas etapas, passamos para os testes em humanos. Estamos pleiteando recursos e, ao mesmo tempo, concorrendo ao prêmio Euro, que pode trazer um apoio financeiro bem interessante para avançarmos mais rapidamente. A gente sempre fala que, além da pesquisa em si, esse projeto, se for exitoso, vai deixar legado porque são poucas as universidades públicas no mundo que conseguem desenvolver novos medicamentos. No Brasil, temos sérias limitações para que isso aconteça porque não temos a estrutura exigida para desenvolver os medicamentos. Então também estamos tentando superar esse gap nacional trazendo esses laboratórios para dentro da UFMG, de forma a desenvolver a nossa tecnologia e as de colegas, que tenham patentes de novos farmoquímicos.

A dependência de drogas é um problema grave de saúde pública no Brasil. Em sua opinião, o que falta para uma abordagem mais ampla e eficiente da temática?
Sim, o Brasil é o segundo mercado mais importantes para cocaína no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Em termos de valores, o mercado crescente é a Europa, onde a droga até então tinha acesso muito limitado. Mas o impacto social é grande porque essas drogas têm um grande poder de causar a dependência – o crack ainda mais que a cocaína. Cada jovem que a gente perde para essa doença tem um impacto, especialmente em um país como o Brasil que passa por uma transição demográfica. Na verdade, falta no país um conjunto de treinamentos básicos para a atenção primária abordar tanto a prevenção quanto o tratamento dos pacientes menos complexos. A atenção primária tem um papel importante nesse tratamento da abstinência e de acompanhamento das recaídas. Infelizmente, hoje, o nosso médico e as equipes de saúde recebem muito pouco tempo de treinamento para uma doença que é tão prevalente. A maior urgência que temos hoje seria, de fato, conseguir fazer essa capacitação mais aprofundada, disponibilizar medicamentos de boa qualidade e ter estratégias inovadoras que possam de fato ajudar os pacientes.

E quais são os próximos passos do projeto? O que podemos esperar? 
O maior desafio hoje são os recursos. Se conseguirmos recursos, tudo vai andar. Os próximos passos, após a chegada dos recursos, incluem trabalhar a finalização dos quesitos necessários para registrar o medicamento na Anvisa e, com isso, conseguir autorização para realizar estudos em humanos. Os próximos testes envolvem estabelecer segurança e dosagem e a melhor resposta para o diagnóstico desses pacientes. Todos esses estudos estão desenhados e orçados, já está tudo bem avançado. 


             • Leia também: “O paradoxo como solução” – reportagem publicada na revista Minas Faz Ciência nº 73 sobre a pesquisa que resultou na vacina Calixcoca