Cocaína e crack são os alvos do imunizante que já está pronto para iniciar testes em humanos
Estima-se que, em 2021, cerca de 22 milhões de pessoas tenham consumido cocaína, o que representa 0,4% da população adulta mundial. Os dados, apresentados no Relatório Mundial sobre Drogas 2023, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), ainda indicam que, no Brasil, essa foi a droga estimulante mais consumida no período. “Das pessoas que consomem a droga, sabemos que uma em cada quatro se tornará dependente, o que é uma quantidade expressiva e resulta em um importante problema de saúde pública”, conta Frederico Duarte Garcia, professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Garcia está à frente de uma equipe multidisciplinar, formada por pesquisadores das áreas de Química, Farmácia e Medicina, responsável pelo desenvolvimento da Calixcoca, uma vacina terapêutica para o tratamento da dependência em cocaína e crack. O estudo encontra-se em fase avançada, tendo obtido resultados promissores na fase de testes pré-clínicos. “Caminhamos, agora, para o registro desse medicamento na Anvisa para, com isso, conseguir a autorização para estudos com humanos”, esclarece o pesquisador.
Frederico Garcia, da Faculdade de Medicina da UFMG: vacina desenvolvida pelo grupo gera anticorpos para a cocaína e o crack e tem vantagens como menor custo e maior facilidade de estocagem e manuseio. (Foto: CCS/Faculdade de Medicina da UFMG)
A FAPEMIG é uma das agências financiadoras do trabalho, tendo apoiado, especialmente, o início do projeto. Por seu caráter inovador, a vacina já teve patente depositada no Brasil e nos Estados Unidos – da qual a FAPEMIG é cotitular – e, atualmente, concorre ao Prêmio Euro de Inovação na Saúde (veja reportagem aqui). Nesta entrevista, Frederico Garcia fala sobre as motivações para a pesquisa, principais desafios e etapas ainda necessárias para que o medicamento esteja disponível à população.
Voltando ao início do projeto, o que motivou a equipe de pesquisadores a desenvolver a vacina para tratar a dependência de drogas como a cocaína e o crack?
Ainda que essa seja a primeira solução dirigida especificamente para o tratamento da cocaína, o projeto não nasceu exatamente para o tratamento da dependência, mas sim relacionado a uma questão ainda mais complexa. Nós ficamos sensibilizados, em 2014, quando o Ministério Público Estadual fez com que os médicos tivessem que declarar, obrigatoriamente, as grávidas dependentes de cocaína para que aquelas crianças fossem para adoção. Nosso ambulatório, de uma hora para outra, inundou-se de mulheres que, infelizmente, eram dependentes e estavam grávidas. Elas queriam, de alguma forma, manter a gravidez e a maternidade, inclusive como forma de superar a dependência. Foi quando resolvemos testar uma nova estratégia. Procuramos o professor Ângelo de Fátima, do departamento de Química da UFMG, que sintetizou uma molécula nova que se mostrou eficaz nas ratas grávidas. Os testes mostraram que esses animais, recebendo cocaína de forma regular durante a gravidez, tinham ganho de peso maior se comparado aos não vacinadas, menos abortos espontâneos e uma prole maior. Além disso, os ratinhos nasciam com os anticorpos para a cocaína e sentiam menos o efeito da droga, o que mostra que o efeito, provavelmente, é transmitido de uma geração para outra por via placentária e pelo leite materno.
A inovação principal da vacina é essa molécula sintética desenvolvida no departamento de Química?
Essa é uma das inovações. Na verdade, a molécula sintética é uma plataforma de vacinas. Como comparação, as vacinas convencionais normalmente utilizam plataforma proteica, que pode ser uma proteína de vírus ou bactéria. A gente dá um passo importante nesse sentido ao usar uma molécula totalmente sintética para fazer uma plataforma vacinal. Existem vantagens: você controla todo ciclo de produção de maneira mais simples; tem um custo menor do que as vacinas proteicas; não precisa de cadeia fria para transporte e nem de refrigeração para a estocagem. Outra vantagem, quando comparada a vacina anticocaína em desenvolvimento nos Estados Unidos, é que o resultado obtido pela nossa equipe é melhor do ponto de vista de quantidade de anticorpos produzidos, o que, acreditamos, vá se manter em humanos também.
Clinicamente, o que caracteriza o vício, e qual a diferença do uso eventual?
A dependência é quando você passa a ter consequências negativas pelo uso de uma droga e isso evolui para uma perda de controle muito acelerada, que leva a diversos prejuízos. Esse processo todo vai culminar em dificuldades relacionais, perda laboral, e assim por diante. O uso ocasional, também chamado de uso recreativo – mas eu não gosto desse nome porque dá impressão que é possível fazer uso recreativo – difere da dependência porque, nesta, você tem perda de controle, estreitamento do leque de atividades e uma série de outras dificuldades que vão se acentuando com o tempo. A gente sempre lembra que a dependência não é uma doença de uma pessoa só, é uma doença de uma família inteira: cada dependente está ligado a pelo menos três ou quatro pessoas que estão ali batalhando, juntas, para tentar ajudar e que também sofrem as consequências dessa dependência.
Ainda em relação à tecnologia, o senhor poderia explicar a diferença entre uma vacina preventiva e uma terapêutica, como a Calixcoca? Por que a terapêutica parece uma vacina soro, não é?
Sim, é como se fosse uma vacina soro. O nome vacina não é o mais correto, o melhor seria “terapia de opsonização indutora de anticorpos anticocaína”. Mas optamos por vacina terapêutica, como é a vacina utilizada, por exemplo, no tratamento de alergias, no qual o objetivo é modular o sistema imune para que ele produza anticorpos. No caso, a gente produz anticorpos contra a cocaína. Toda vez que o indivíduo consome a droga, esses anticorpos se ligam a ela e impedem que passe por uma barreira protetora do cérebro, não agindo no sítio que deveria agir. Dessa forma, não causa a ativação do sistema de recompensa e a retomada da compulsão. Então essa não é uma vacina para ser usada como panaceia, nem como uma zarabatana, tipo lá na Cracolândia - já vimos umas ideias assim. Na verdade, ela é um complemento ao tratamento que já existe, um recurso que pode ser associado ao tratamento psicológico e a outras medidas, de forma a aumentar as chances desse paciente de manter-se em abstinência e reconstruir sua vida dentro de seus projetos individuais e sua subjetividade. Sabemos que esse medicamento vai ter mais sucesso entre os pacientes que entraram em abstinência e querem se manter em abstinência, pois, não percebendo o efeito da primeira recaída, eles dão seguimento a sua vida.
• Leia também: “O paradoxo como solução” – reportagem publicada na revista Minas Faz Ciência nº 73 sobre a pesquisa que resultou na vacina Calixcoca