A utilização de plantas para o tratamento de doenças faz parte da cultura popular brasileira. Há relatos desse tipo de utilização desde 2500 a.C., mas a sua incorporação foi difundida de fato pelos chineses e indianos. A fitoterapia não é uma novidade, mas o estudo aprofundado do poder medicinal das plantas, principalmente relacionado a doenças crônicas, como a diabetes e a obesidade, é inovador e promissor. Um exemplo é o trabalho da pesquisadora Fernanda Magalhães, professora do curso de medicina da Universidade de Uberaba (Uniube), responsável por um dos projetos finalistas do Prêmio Euro 2023, com foco no tratamento fitoterápico de diabetes mellitus tipo 2 e obesidade.
Denominado “Estudo dos efeitos do extrato aquoso a frio de Plathymenia reticulata Benth associado a extrato aquoso a frio de Azadirachta indica (Neem) em modelo experimental de diabetes mellitus tipo 2”, o trabalho foi aprovado na chamada Demanda Universal da FAPEMIG em 2022 e está em desenvolvimento. A pesquisadora vem estudando, desde 2005, o efeito da planta Plathymenia reticulata Benth, popularmente conhecida como vinhoto ou vinhático, no tratamento da diabetes tipo 1 em camundongos e, recentemente, associada à Azadirachta indica, conhecida como Neem, para o tratamento da diabetes tipo 2. Ambos os estudos também se relacionam com a perda de peso nos animais testados.
Segundo Magalhães, os primeiros resultados da pesquisa recente são muito satisfatórios e empolgantes. Ela afirma que o investimento da Fundação foi essencial para a pesquisa. “Nós já tínhamos feito outros experimentos com um modelo de diabetes tipo 2, mas nós não conseguimos um número muito grande de animais diabéticos. Dessa vez, nós tivemos 100% dos animais diabéticos. Com a verba da FAPEMIG, nós adequamos bem a metodologia. Então, agora, fizemos um modelo de dieta hiper lipídica, induzindo uma resistência insulínica nos animais e, depois, inserimos uma dose pequena de estreptozotocina para destruir um pouco do pâncreas. Ou seja, realmente um modelo bem semelhante ao diabético tipo 2”, destaca a professora.
Do uso popular ao científico
Magalhães começou seu estudo com as plantas medicinais em 2005, inicialmente com o vinhático, para descobrir seu potencial. Ela conta que a sugestão de trabalhar com a planta veio da vivência de um aluno que relatou histórias de pessoas do interior de Goiás que utilizavam o chá do vinhoto para controlar a diabetes. “Eu sou endocrinologista, trabalho muito com diabetes, e esse aluno perguntou se a gente não poderia desenvolver um projeto para estudar essa planta. Nós formatamos um projeto experimental com animais e o iniciamos. Ele teve um resultado positivo, mas depois nós tivemos que fazer a adequação na metodologia para dar continuidade”, conta.
Durante os anos e apresentações do projeto e dos resultados, os pesquisadores começaram a incorporar sugestões e aprimorar os testes. Em 2009, o grupo de pesquisa da professora entrou com um pedido de patente para o tratamento desenvolvido com a Plathymenia reticulata Benth. Magalhães destaca que o projeto continuou se aprimorando e, em 2018, eles incorporaram às pesquisas a Azadirachta indica e a sua combinação com o vinhoto para potencializar o tratamento.
Enquanto o vinhoto é uma planta tradicional do Cerrado brasileiro, o neem é de origem indiana. O primeiro não possuía tanto embasamento científico, já o segundo possuía uma comprovação da sua eficácia para o tratamento de certas enfermidades. “Nós temos, aqui em Uberaba, uma fazenda com uma grande plantação de neem, além de uma empresa que exporta a planta. Vimos que já existiam publicações em relação ao neem na literatura, mas sobre a Plathymenia realmente não existia nada em relação ao diabetes. Com nossas pesquisas, encontramos resultados que mostraram que a Plathymenia é muito boa. No modelo experimental do diabetes tipo 1, ela diminuiu bem a glicemia dos animais, diminuiu os lipídios e diminuiu também o peso”, completa a pesquisadora.
O tratamento
Em qualquer tipo de tratamento, da medicina tradicional às plantas medicinais, pode haver algum efeito colateral. Entretanto, no caso das plantas estudadas por Fernanda Magalhães, não houve efeito tóxico. “Fizemos o estudo de toxicidade da Plathymenia onde nós a estudamos por três meses. Foram 12 semanas de tratamento para ver se existiria alguma toxidade crônica e descobrimos que no extrato aquoso, a Plathymenia não tem toxidade nenhuma”, explica.
Para o processo de teste do tratamento para a diabetes tipo 2 nos camundongos, inicialmente foram sugeridas quatro semanas. Os pesquisadores simularam a doença nos camundongos e então administraram uma pequena dosagem do extrato da planta nos animais. Entretanto, os resultados geraram mais dúvidas aos pesquisadores, pois ao mesmo tempo em que houve a diminuição de alguns indicadores, como a hemoglobina glicada, a glicemia dos animais diabéticos permaneceu alta.
“Vamos estudar mais, fazer um tratamento mais prolongado ou aumentar a dosagem que temos usado. Talvez usar uma dosagem um pouco mais alta para tentar ver realmente esse efeito. Eu não acredito que seja por causa do número de animais, mas talvez pelo tempo de tratamento ou da dosagem. Mas nós tivemos diminuição de lipídios e do ganho de peso dos animais diabéticos, o que realmente nos indica a possibilidade de um medicamento fitoterápico”, complementa a professora.
Por que a fitoterapia?
A fitoterapia utiliza as plantas medicinais para o tratamento de certas doenças. Dentro da indústria farmacêutica, elas são transformadas em extratos, comprimidos ou em substâncias desidratadas. Desde 2006, o Brasil possui a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) que inclui e regulamenta a prática de terapias não convencionais, incluindo a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Com isso, o mercado internacional desses medicamentos vem recendo investimento para pesquisas e aprimoramentos. Uma vantagem é o seu potencial de não apresentar efeitos colaterais, além do baixo custo de produção.
Especificamente para o tratamento da diabetes e da obesidade, Fernanda Magalhães destaca que esse fitoterápico pode ser um ganho enorme porque os tratamentos tradicionais existentes muitas vezes combinam mais de um medicamento para controle e, neste caso, seria mais uma opção, mas com baixo custo. “Nós sabemos que às vezes, assim como não existe somente um composto na planta, às vezes é uma associação de compostos que vai realmente ter aquele efeito é farmacológico, então seria uma nova classe de medicamentos”
“Uma grande vantagem é o custo. Hoje, nós temos um excelente tratamento para diabetes e obesidade, que são os análogos de GLP, uma classe de medicamentos muito caros. O efeito da nossa planta às vezes lembra um pouco esses análogos do GLP. Então seriam uma opção interessante para dosar os hormônios relacionados às doenças para evidenciar se o efeito é semelhante, ou se as plantas estimulam os hormônios, com custo provavelmente menor, tornando-se mais acessíveis a toda a população”, complementa a pesquisadora.
Medicamentos fitoterápicos já são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de forma gratuita, o que permite a introdução posterior deste tratamento em desenvolvimento. Inclusive, em 2012, o Ministério da Saúde lançou um Caderno de Atenção Básica com orientações acerca das Práticas Integrativas e Complementares: Plantas Medicinais e Fitoterapia na Atenção Básica que consideram orientações para “ampliar a oferta de serviços e produtos relacionados à fitoterapia no SUS, de forma segura e racional”.
Atenção e cuidados
Apesar de a princípio parecerem inofensivas, o uso deliberado das plantas medicinais pode causar intoxicação, principalmente no fígado. “Hoje nós possuímos excelentes medicamentos fitoterápicos no mercado, para depressão, distúrbios do sono, pomadas e xaropes anti-inflamatórios, mas todos possuem respaldo científico. O paciente às vezes conta que está usando tal planta e deixou de tomar os medicamentos, e quando vamos olhar a glicose do paciente, no caso do diabetes, ela continua alta. Então nem tudo o que popularmente é usado, realmente é efetivo. O fitoterápico também pode ter efeito colateral, por isso ele tem que ser estudado para ver se existe algum risco ou alguma toxidade”, explica a professora, destacando a importância da pesquisa científica.
No caso do tratamento em desenvolvimento com a Plathymenia reticulata Benth e a Azadirachta indica, ela explica que o extrato aquoso, que é a forma que eles optaram por utilizar, não possui nenhuma toxicidade. “Mas, em testes utilizando o extrato hidroalcóolico, apesar de mostrar-se mais eficaz, ele possui uma janela terapêutica curta. Isso em animais, mas é preciso estudar em seres humanos. Pode ser que no animal tem algum efeito, mas no ser humano, pode ser diferente, pode ser melhor ou pode ser pior. Então, realmente para desenvolver um medicamento tem que se realizar estudo clínico”, complementa".
Com isso, como forma de orientar a utilização, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) possui uma Cartilha de Orientação sobre o Uso de Fitoterápicos e Plantas Medicinais, o Momento Fitoterápico e o Formulário de Fitoterápicos, que fazem parte do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), órgão responsável por “fiscalizar as farmácias e indústrias produtoras de medicamentos, com intuito de proteger e promover a saúde da população”. Essas orientações vão desde a “forma correta de preparo, indicações às restrições de uso de diversas plantas medicinais a serem manipuladas em farmácias autorizadas”, como descreve a cartilha.
Próximos passos
O tratamento desenvolvido por Fernanda Magalhães está entre os 12 finalistas do Prêmio Euro de Inovação na Saúde que busca reconhecer as grandes inovações da área médica da América Latina. Segundo a pesquisadora, a premiação de 500 mil euros, é uma possibilidade real de investimento em mais testes e pesquisas para o desenvolvimento do tratamento. “O Prêmio Euro vai possibilitar que realmente a gente consiga esse novo fitoterápico para ajudar essas pessoas, por serem duas doenças crônicas, muito prevalentes e com uma alta mortalidade. Esse também pode ser o primeiro fitoterápico para diabetes no mundo, porque estudando a doença há muito tempo, não encontrei nenhum fitoterápico nem para diabetes, nem para obesidade”, destaca.
Fernanda Magalhães explica que, dentro da universidade, a proposta é continuar o estudo testando outras dosagens e teorias. “Agora a gente tem vários questionamentos e nós gostaríamos de continuar o estudo com outros experimentos e outras dosagens”, completa a professora também destacando a possibilidade de parceria com farmacêuticas para a transferência de tecnologia e o início de ensaios clínicos com os tratamentos. “Para o ano que vem, vamos programar esse contato com empresas para vermos como é possível continuar”.
Créditos da foto: arquivo pessoal Fernanda Magalhães