A intolerância à lactose é caracterizada pela má digestão dessa substância, presente nos produtos à base de leite. Quem sofre com o problema normalmente apresenta sintomas relacionados a uma inflamação no intestino, como inchaço abdominal, cólicas e dor. De maneira natural, bebidas fermentadas podem auxiliar na desinflamação e manutenção do intestino, entretanto, na indústria brasileira as mais comuns são aquelas derivadas do próprio leite. Inspirados nessa realidade e apoiados pela FAPEMIG, os professores da Universidade Federal de Lavras (Ufla) Rosane Schwan e Disney Dias desenvolveram, junto com as estudantes Ana Luiza Freire e Cíntia Ramos, um estudo que gerou uma bebida fermentada, não alcóolica e não láctea, à base da mandioca.
Como ponto de partida da pesquisa está o ramo de pesquisa da professora Rosane Schwan, que é coordenadora do Núcleo de Estudos em Fermentações da Ufla, e há 29 anos trabalha com microbiologia voltada à alimentação. Os estudos com a mandioca foram propostos a partir da realidade da alimentação brasileira herdada dos indígenas. Schwan conta que os processos realizados pelos indígenas para a fabricação de bebidas fermentadas sempre a interessaram. Além disso, estudos da microbiota desses alimentos mostraram que eles não possuem histórico como agentes alérgicos.
“Através de um estudante do Mato Grosso, tivemos contato com a tribo Tapirapé, onde pegamos amostras dessas bebidas. A partir do conhecimento das bebidas fermentadas indígenas, nós propusemos um projeto que foi uma mistura de substratos não usuais, como mandioca, arroz, amendoim e milho, que são comumente utilizados por eles para a fabricação dessas bebidas”, diz.
A partir de então, novos produtos foram desenvolvidos, incluindo o da bebida fermentada à base da mandioca, que gerou uma patente, concedida em 2021 pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), relativa à tecnologia aplicada tanto com os microrganismos utilizados, quanto no substrato. Isso significa que os todos os materiais utilizados para a produção da bebida são novos, criados a partir de testes da microbiota da mandioca. A patente da bebida fermentada à base de mandioca está disponível para consulta na Vitrine Tecnológica da FAPEMIG.
O processo
Para a fabricação de uma bebida fermentada, é necessária a adição de leveduras e microrganismos para auxiliar no processo. Um exemplo comum são as bebidas fermentadas à base de leite, que se destacam também pelo seu potencial probiótico. Por isso, Disney Dias conta o quão interessante é a criação de bebidas fermentadas à base de outros substratos, pelo fato de parte da população brasileira ser intolerante à lactose ou seguir dieta vegana – cerca de sete milhões, de acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
A mandioca é um tubérculo muito consumido no Brasil e segundo Schwan, ele é muito difícil de ser transformado em líquido. Por meio de testes com o cultivo de microrganismos foi possível desenvolver uma metodologia para isso, e é essa metodologia que virou patente.
O professor Disney Dias, que é farmacêutico, bioquímico e estuda a ciência dos alimentos, conta que no caso de fermentações com microrganismos, é possível que apareçam aqueles próprios vindos do substrato, mas que podem ser bons ou ruins. “Quando você trabalha com microrganismos especificamente para um alimento, eles podem ser originados no próprio alimento e aparecer durante o processo de fermentação. Por isso, fazemos estudos de avaliação que a gente chama de ecologia microbiana”, diz.
Dias também explica que durante o processo diferentes tipos de microrganismos podem aparecer e sumir, mas cada um deixa a sua contribuição na bebida. “A gente estuda aqueles que podem trazer boas contribuições e remove aqueles que podem gerar algum problema. Esses microrganismos podem ser isolados e, depois, guardados”, completa o pesquisador também destacando que eles vão para o banco de cepas onde são registrados nacionalmente e internacionalmente. Ao longo dos anos de estudo sobre fermentação, a Schwan já garantiu mais de quatro mil microrganismos certificados para o banco da Ufla.
O processo de identificação dos microrganismos é o início da fabricação da bebida, pois a partir de então é possível adicionar os demais compostos. Porém, nem sempre somente aqueles vindos do próprio substrato são suficientes para o processo de fermentação. Este é um dos pontos de importância do banco de culturas e do estudo para identificar quais serão os melhores microrganismos para o resultado pretendido.
“As bactérias láticas e as leveduras que a gente trabalhou estão dentro dessa coleção de culturas. Elas podem ter vindo da mandioca, de outro fruto, ou de uma outra amostragem, mas são microrganismos reconhecidamente seguros. Mesmo que eles ainda estivessem vivos no final do processo e nós o ingeríssemos, isso não seria problema. Em muitas situações, isso seria até um benefício, porque esses microrganismos têm um potencial de ação probiótica, eles vão ajudar a microbiota do nosso intestino a funcionar melhor”, diz o professor.
Quanto ao produto desenvolvido, ele pode conter a adição de açúcares, sabores e aromas vindos de outras frutas estudadas para gerar maior identificação pelo consumidor. A professora Rosane Schwan ainda estuda a fabricação de outros produtos a partir da fermentação. Atualmente ela está desenvolvendo um sorvete à base de inhame.
Benefícios
De acordo com a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), a base da alimentação brasileira é o arroz e o feijão, devido ao alto teor calórico, o que causa maior saciedade. Entretanto, os mesmos dados ainda apontam para a defasagem nutricional da população devido ao alto consumo de refrigerantes e a diminuição na ingestão de frutas, verduras e legumes. As bebidas fermentas estudadas e desenvolvidas pelos pesquisadores não substituem os nutrientes encontrados nos vegetais, mas podem adicionar alguns benefícios à saúde.
“Os microrganismos presentes nos alimentos fermentados têm benefícios: eles podem aumentar a atividade antioxidante, possuem nutrientes e podem sintetizar vitaminas, que são necessárias ao nosso organismo. Eles também ajudam a quebrar moléculas mais complexas estruturalmente, como por exemplo, o amido, fazendo com que fique mais fácil a digestão”, explica Disney Dias.
No caso de pessoas intolerantes à lactose, a bebida fermentada não alcóolica e não láctea, chega para suprir necessidades nutricionais. “A população teria acesso a um alimento com os benefícios da fermentação, ou seja, que estimulam a formação de ácidos orgânicos, a formação de compostos geradores de aromas e sabores, além de compostos antioxidantes que podem estimular a liberação desses compostos no alimento ou bebida fermentados”, destaca o pesquisador.
Processo inovador
O depósito de patentes é um processo que garante aos cientistas a proteção intelectual e industrial sobre suas inovações e descobertas. Com isso, os produtos desenvolvidos pelas pesquisas podem ser explorados comercialmente por empresas, chegando até a população.
A FAPEMIG tem entre seus objetivos estimular a cultura da proteção do conhecimento no Estado. “Acredito que a FAPEMIG tenha todo o potencial para ampliar sua atuação como o promotor do desenvolvimento da “cadeia de valor de inovação”, atuando como um hub onde os diferentes atores – academia, institutos de tecnologia, empresas e agências do governo – colaborem”, destaca o presidente da Fundação, Carlos Arruda.
Disney Dias e Rosane Schwan contam que o processo de industrialização da bebida está em fase de negociação com indústrias por meio do Núcleo de Inovação e Transferência Tecnológica (Nintec) da Ufla. Porém, são necessários mais testes a nível industrial, uma vez que a bebida foi desenvolvida com a escala de laboratório.
“Temos que testar em 100 ml, depois 1 litro, 5 litros, 50 litros e assim por diante. E assim vemos como o microrganismo e o produto final sem comportam, podendo diminuir, manter ou aumentar o tempo de fermentação, por exemplo”, explica Dias. Esse processo pode ser feito tanto em laboratório, como na indústria, porém em ambos é necessário investimento e contato, como o que é proposto pela FAPEMIG.